quarta-feira, 23 de maio de 2018

Temporada 2018


Crítica do Segundo Caderno de O Globo ( 23/5/2018)

Crítica/ “A ordem natural das coisas”
A desordem absoluta das coisas

O determinismo que a expressão “a ordem natural das coisas” carrega como senso comum é desmentida pelos personagens do texto escrito e dirigido por Leonardo Netto. Lúcio se debate, sem saber como reagir, diante da rejeição da noiva no dia do casamento. Perplexo e depressivo, é acompanhado pelo ex-futuro cunhado Emiliano nas suas sucessivas perdas de confiança e aumento de doses alcoólicas. A chegada inesperada de uma vizinha, à procura de seu gato fugitivo, acrescenta peça inesperada ao jogo de acasos aparentes. Cada um age como se os movimentos confirmassem papéis imutáveis. Não há empenho de Lúcio em saber a razão do desprezo, assim como o casal se enreda em trama, incapaz de a desenredá-la. O contexto, profissional, afetivo, nostálgico, dramático, é exposto por monólogos que defrontam o trio com suas existências. O desejo enganoso de dominar quaisquer atitudes se perde nas infinitas possibilidades que tais atos podem provocar. O fundo do poço emocional é um mergulho que leva ao aumento da sua profundidade. E de aceitar que não é possível controlar absolutamente tudo. Leonardo Netto integra a situações realistas e a diálogos coloquiais plano reflexivo que pretende apenas caracterizar ação dramática de contornos definidos. Há uma história a contar, que assume na objetividade descritiva, o ponto de interesse e comunicabilidade. Bem estruturada e em ordem direta, a narrativa desmonta a naturalidade da cena, atribuindo às coisas a relatividade do seu valor. A direção envolve na cenografia de paredes vazadas, caixas de papelão e porta central de significante vermelho, de Elsa Romero, a troca nervosa de objetos e sentimentos. Ao ritmo das palavras dúbias e intenções incertas, reescreve-se drama psicológico, sem psicologismos, dramaturgia de situação única, de muitas derivações, e contenção de meios, com desperdício mínimo. Com poucas invenções e abandonando efeitos superficiais, Leonardo realiza, com comedimento de recursos e prudência criativa, montagem que oferece boa oportunidade de reencontro do público com um gênero, hoje nem sempre bem encenado. Beatriz Bertu imprime juventude e força viva para “vizinha de sitcom” que sai de cena com divertida menção a carta de despedida dos melodramas. Cirillo Luna mantém a ambiguidade do amigo em interpretação de convincente linearidade nas emoções. João Velho, um Lúcio exaltado na sua depressão pós-abandono e confuso na ressaca ante-revelação final, equaliza os estados arrebatados do personagem numa linha de contínuo cuidado em não extrapolar limites.