quarta-feira, 16 de maio de 2018

Temporada 2018


Crítica do Segundo Caderno de O Globo (16/5/2018)

Crítica/ “O imortal”
Imortalidade sob o domínio da palavra

O conto “O imortal”, de Jorge Luis Borges, leva o leitor a tantas percepções quanto são os seus possíveis significados de fruição. As camadas narrativas que propõe e o caráter histórico-filosófico-fabular que o estrutura podem ser vistos como dificuldades quando transferidos para a cena. A versão teatral de Adriano Guimarães, que divide a dramaturgia com Patrick Pessoa, distende a  as possibilidades da transferência das características próprias de cada linguagem. Monólogo no palco como consequência natural da voz única do livro, a transposição persegue desvendamento em imagem sem fuga ao mistério da palavra. Os adaptadores utilizam, além do conto retirado da coletânea “Aleph”, conferência de Borges de 1978, intitulada “A imortalidade”, para a “história que parece irreal...com traços circunstanciais presente nos fatos, mas não na memória deles.” Há um relato que se inicia na descoberta de manuscrito esquecido nas páginas de um dos seis volumes da “Ilíada”, que percorre impérios, tempos e línguas “para viver no pensamento, na pura especulação.” Na peregrinação homérica em busca da Cidade dos Imortais chega-se à descoberta de que “só restam palavras, palavras deslocadas e mutiladas, palavras de outros, pobre esmola que lhe deixaram as horas e os séculos”. A montagem não afasta o espectador de acompanhar texto de conotações referenciadas ao literário e de sentido reflexivo, mas o aproxima de penetrar na escrita labiríntica com proposição de fala direta. A atriz recebe o público, já no palco, indicando lugares, oferecendo água. Mais do que desarmamento a eventuais obstáculos, é convite a entrada, livre e múltipla, numa dicção ativada. A direção de Adriano Guimarães reforça essa naturalidade do discurso, com coloração que procura o coloquial dramático que, a princípio, quebra formalismos. Na sequência, padroniza a comunicabilidade e desarticula a intensidade da expressão. A cenografia, assinada pelo diretor e por Ismael Monticelli, com  caixas de papelão em torre, livros espalhados e cadeira no centro, assume papel decorativo. Quando a única presença é a de gravação sonora, a atriz deixa o palco e se acomoda, anulada, no escuro do bastidor improvisado. O espaço vazio da instalação plástica de dispensável imponência, resulta em tempo morto do monólogo, e na ampliação artificial  do que se ouve. Gisele Fróes assume,  em integral comprometimento, a opção de encontrar a naturalidade da interpretação. Se em trechos adota a nuança de contar uma fábula, em outros delineia um ar de hesitação, de perda de ritmo, que antes de confundir, sela a atuação. Não há ênfases ou destaques nas passagens do tempo cênico ao explorar os diversos níveis da imortalidade no universo das ideias. Gisele Fróes domina a complexidade da palavra encenada, com a consciência de saber como fazê-la ressoar. A registrar a cena final, em que a letra de Iggy Pop ouvida no início, repercute na sua gravação de “Insensatez”, de Tom e Vinícius, e se estende a Chopin, em sensível conexão e síntese do que se assistiu.