terça-feira, 26 de dezembro de 2017

Temporada 2017

Retrospectiva 2017

O ano teatral, visto sob a perspectiva das dificuldades financeiras e da perda de patrocínios e de editais subtraídos, foi um período difícil em permanente estado de sítio. As produções se viabilizaram com meios voluntaristas, como se estar em cena fosse um desejo incontornável, estímulo maior e único para tornar possível a criação. Mais comprometida pelos limites do viável do que por efetivos processos de criação, a temporada se desenrolou neste período de dificuldades, repetindo o que já se vivia em 2016. Como no último ano, a temporada carioca foi ainda mais restrita em variantes de propostas e na generosidade das ideias. Os palcos foram ocupados pela urgência de se manter com o que tantas crises procuram roubar em produção, tempo, densidade e público.
"Suassuna": sons e imagens de um universo

Os musicais, tão sensíveis aos orçamentos, prosseguiram na escalada de manter a oferta no mercado teatral. Foram muitos, se considerarmos as restrições de patrocínio, e apenas alguns, se levarmos em conta a sua qualidade e inquietação diante do formato. Em “
Suassuna – O auto do Reino do sol”, o autor paraibano está pleno neste musical escrito por Braulio Tavares, dirigido por Luiz Carlos Vasconcelos e apresentado pelo grupo Barca dos Corações Partidos. Longe de ser biográfica ou de exaltar a manufatura de uma escrita, a celebração cênica-literária envolve a alma de um universo, navegado com poética musical de um circo alegórico de palhaços quixotescos, retirantes trágicos e fabulação ancestral. O roteiro abre as comportas de caudal de citações para escorrer pelo leito de sons originais e sotaque territorial. A produção de Suassuna flui, generosa e natural, em texto de dicção própria, que condensa a humanidade de personagens de existência armorial em palco festivo. O bem costurado roteiro, deságua na excelente trilha sonora de Chico César, Beto Lemos e Alfredo Del Penho, e se derrama na direção sólida. A convergência dessa triangulação de papéis, resulta em musical que ultrapassa modelos do gênero, redimensiona questões regionalistas e expande dramaturgia de referência. Em linha oposta, o musical “O grande sucesso” encontra em formato, aparentemente incompatível com o gênero, espaço lírico-dramático para traçar as frágeis ligações entre palco e realidade. Com humor cáustico e insinuações poéticas, o êxito é revisto como forma ilusionista de cantar a existência. A grandeza do sucesso, diminuída pela enganosa atração para alcançá-lo, se apresenta como certeza da finitude em canções e letras de Alexandre Nero, neste concerto cênico em que “todos somos obrigados a viver sem saber como”. Montagem paranaense, teve a temporada no Rio prejudicada pelos problemas de acústica do Teatro Clara Nunes, que sofreu um incêndio meses depois. 

"Dançando no escuro": na trilha da tragédia

“Dançando no escuro”, versão teatral do filme do dinamarquês Lars von Trier, pode se enquadrar ao estilo como linguagem confrontadora. Pelas características do movimento Dogma 95 da origem, há um artificialismo formalista que faz com que o melodramático assuma a função de abalar a emoção, e os sinais coreográficos e musicais da tradição do gênero, ganhem o sentido invertido de comentários cruéis à sua estética. Dani Barros, a bem sucedida diretora estreante valorizou com autonomia criativa, a adaptação cênica do filme, em montagem com rigor no desenho e acabamento na realização. O diretor Rodrigo Portella, ao lado da cenógrafa Aurora dos Campos, se destaca em “Tom na fazenda” pela construção dramática-visual que amplia a narrativa realista  para revelar os movimentos sísmicos subterrâneos. Com a ação física, integrada à tensão emocional, a direção atinge o equilíbrio delicado da envolvência bipolar como agem os personagens, numa alternância de agressividade, surda e raivosa, com vozes interiores, estrondosas e solitárias. José Roberto Jardim insuflou ar renovador e revigorante ao texto convencional do romeno Matei Visniec com ambientação visual, limítrofe às imagens Bob Wilson, e com fraseado dramatúrgico em referência a Samuel Beckett. O que é visto, conduz à memória de um lugar de representação, do qual restam destroços de harmonia e beleza. O diretor ultrapassa o formalismo esteticista para alcançar a inflexão poética. Paulo de Moraes conferiu à sua versão de “Hamlet” artesanato criterioso, com soluções de efeito e inteligência cênica, que referendam a boa audição shakespeariana. Com recursos surpreendentes, o jovem príncipe surge dos estilhaços de uma primeira cena de impacto, que o diretor ameniza no segundo ato, sem perder a segurança e domínio de uma encenação madura. 

"Aquilo que eu mais temia...": encenação niilista

Grace Passô, autora do monólogo “Mata teu pai”, baseado em tragédia de Eurípedes, captura em alta temperatura a febre de imprecação de Medéia diante da necessidade de que a escutem. Neste libelo feminista, a autora recusa certos papéis atribuídos à mulher, atualizando o sentido grego de destino com poética rascante e “agit-prop” (agitação e propaganda) de apelo à ação. Pedro Kosovski apresentou, apenas em dois dias no Tempo Festival, “Aquilo que mais temia desabou sobre minha cabeça”. Vozes femininas assumem ressonâncias bíblicas para falar de contradições de hoje, em que “o discurso que discursa sem um corpo”. Kosovski toca a atualidade em fala contínua, sem pausas dramáticas e lembranças à ação narrativa, numa intensa exposição niilista. Yara de Novaes demonstra em “Love, love, love” a força de uma atriz sofisticada em seus meios expressivos e capaz de, com inteligência cênica e sensibilidade interpretativa, alcançar a complexidade da personagem. O surgimento de Aline Deluna em “Josephine Baker – A Vênus Negra”  aponta para uma intérprete com recursos e com frescor vocal que sugerem uma boa carreira em musicais. Gustavo Vaz e Armando Babaioff trazem, em atuações detalhistas, a rudeza dos conflitos de “Tom na fazenda”. Matheus Macena, com fúria corporal, desempenha a luta contra violências em “Guanabara canibal”.
Larissa Bracher tem atuação precisa e modulada pela vertigem das questões de gênero em “Rio diversidade”.