segunda-feira, 3 de abril de 2017

Temporada 2017

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (31/3/2017)

Crítica/ “Tom na fazenda”
Regiões obscuras da aspereza emocional

Um homem irrompe em uma fazenda de gado, no Canadá profundo, para o funeral do companheiro, e frente a mãe e ao irmão do morto, descobre que a imagem do desaparecido está cercada de meias verdades e mentiras perversas. Ao ser enredado nas dissimulações para esconder sentimentos, incorpora em si as dubiedades de relações familiares ensombradas, entrando em um jogo que o confunde com ambiente rude e aspereza emocional. A narrativa de Michel Marc Bouchard transita por áreas solitárias e regiões obscuras, não perdendo de vista o panorama de sexualidade oprimida. Os conflitos são internos, mas se espalham, virulentamente, pelo  convívio que sufoca, mesmo antes das explosões de seu reconhecimento. O autor canadense desenha teia dramática de fios bem tecidos, traçando a subjetividade de relações no ambiente despovoado de real enfrentamento. De estrutura realista, o texto cria vozes interiores, mantendo as situações em  contraplano permanente. A montagem de Rodrigo Portella e a cenografia de Aurora dos Campos ampliam o arco da cena pela condensação interpretativa e eclosão corporal. A lona que cobre o palco, em um ringue lamacento, se transforma em campo de pasto, em que os homens se digladiam, muitas vezes como violência, outras com a distância das palavras enganadoras. Os diálogos se completam no enfrentamento físico, mas se mantêm enigmáticos nos olhares frontais e corpos rígidos voltados para a plateia. A envolvência bipolar como agem os personagens é transposta na alternância de uma mesma agressividade, surda ou raivosa. Essa construção dramática-visual desata as amarras realistas, encontrando os movimentos sísmicos subterrâneos, sem qualquer categorização psicológica. A ação física está integrada à tensão emocional, em equilíbrio delicado. A iluminação de Tomás Ribas e a direção musical de Marcelo H. sublinham com precisão a coreografia de Toni Rodrigues e a preparação corporal de Lu Brites. O figurino de Bruno Perlatto procura as características dos personagens. No elenco, de coesa e vigorosa identidade, Camila Nhary tem participação menos destacada, por não expandir as restritas possibilidades de uma personagem funcional. Kelzy Ecard sustenta a emoção tensionada de uma maternidade sufocada. Gustavo Vaz estabelece  fronteiras bem demarcadas entre a truculência e impulsos do irmão atormentado. Armando Babaioff conduz a jornada do visitante até ao lodaçal como um mergulho lento, sutil, destrutivo e brutal em direção ao desvendamento de uma mentira.