Crítica do
Segundo Caderno de O Globo (31/3/2017)
Crítica/ “Tom na
fazenda”
Um homem irrompe em uma fazenda de gado, no Canadá
profundo, para o funeral do companheiro, e frente a mãe e ao irmão do morto,
descobre que a imagem do desaparecido está cercada de meias verdades e mentiras
perversas. Ao ser enredado nas dissimulações para esconder sentimentos,
incorpora em si as dubiedades de relações familiares ensombradas, entrando em um
jogo que o confunde com ambiente rude e aspereza emocional. A narrativa de Michel
Marc Bouchard transita por áreas solitárias e regiões obscuras, não perdendo de
vista o panorama de sexualidade oprimida. Os conflitos são internos, mas se
espalham, virulentamente, pelo convívio que
sufoca, mesmo antes das explosões de seu reconhecimento. O autor canadense
desenha teia dramática de fios bem tecidos, traçando a subjetividade de
relações no ambiente despovoado de real enfrentamento. De estrutura realista, o
texto cria vozes interiores, mantendo as situações em contraplano permanente. A montagem de Rodrigo
Portella e a cenografia de Aurora dos Campos ampliam o arco da cena pela condensação
interpretativa e eclosão corporal. A lona que cobre o palco, em um ringue
lamacento, se transforma em campo de pasto, em que os homens se digladiam,
muitas vezes como violência, outras com a distância das palavras enganadoras.
Os diálogos se completam no enfrentamento físico, mas se mantêm enigmáticos nos
olhares frontais e corpos rígidos voltados para a plateia. A envolvência bipolar
como agem os personagens é transposta na alternância de uma mesma agressividade,
surda ou raivosa. Essa construção dramática-visual desata as amarras realistas,
encontrando os movimentos sísmicos subterrâneos, sem qualquer categorização
psicológica. A ação física está integrada à tensão emocional, em equilíbrio
delicado. A iluminação de Tomás Ribas e a direção musical de Marcelo H.
sublinham com precisão a coreografia de Toni Rodrigues e a preparação corporal
de Lu Brites. O figurino de Bruno Perlatto procura as características dos
personagens. No elenco, de coesa e vigorosa identidade, Camila Nhary tem
participação menos destacada, por não expandir as restritas possibilidades de
uma personagem funcional. Kelzy Ecard sustenta a emoção tensionada de uma
maternidade sufocada. Gustavo Vaz estabelece
fronteiras bem demarcadas entre a truculência e impulsos do irmão
atormentado. Armando Babaioff conduz a jornada do visitante até ao lodaçal como
um mergulho lento, sutil, destrutivo e brutal em direção ao desvendamento de
uma mentira.