quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

Temporada 2017

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (15/2/2017)

Crítica/ “Uma flor de dama”
Ilusão de realidade 

Na tríplice função de autor, diretor e ator, o cearense Silvero Pereira concentrou na sua figura a exposição de um universo que explora com reiterações de seus códigos. Inspirado no conto “Dama da noite”, do gaúcho Caio Fernando Abreu, o monólogo elimina a noite do título para ressaltar a flor que espalha seu aroma insistente pelo convencionalismo de uma imagem. O travesti que mergulha em mais uma noite sem perspectivas, depois de seu show de dublagem e alguma droga, conversa com jovem, em torno de copos de cerveja e ressentimentos. O desabafo para o ouvinte silencioso inclui abuso sexual na infância, preconceito familiar e autocomplacência vitimada. O personagem se situa no que, tantas vezes, se estabeleceu como comportamento à margem e rejeição social. O quadro, que “Uma flor de dama” ratifica e congela em estereótipos, é acrescido pela deterioração do tempo, que desgasta as referências a Aids e impõe tratamento melodramático a questões que pretende denunciar. Silvero constrói a cena de olho nos contornos da sua atuação. No espaço triangular da ambientação, começa por se maquiar no camarim, se desloca para a mesa de um bar, para se desmontar ao final, sentado em vaso sanitário. Nos primeiros e longos minutos, quando os gestos e a dublagem eliminam a trama falada, a composição corporal comenta com melhor competência o que as palavras exacerbam. Os movimentos respaldam a ação oculta com maior dramatismo, ainda que se esgotem na excessiva duração. Como ator, Silvero Pereira detalha, do bater das unhas na mesa ao grito solitário, o travesti no percurso da ilusão à realidade.