sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

Temporada 2017

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (13/1/2017)

Crítica/ “Mata teu pai”
Mulheres materializadas em Medéia 


Grace Passô, autora desse monólogo baseado na tragédia de Eurípedes, captura em alta temperatura a febre da imprecação de Medéia diante da necessidade de que a escutem. Quer falar daquelas, que como ela, deixaram suas terras. Apontar as demarcações do território masculino como sujeição inaceitável. Perseguir a palavra mãe como sua própria condição: a de “dar a luz e tirar a luz”. Dizer de matar como um ato de estupro da fidelidade. Mostrar que o amor é confundido com compaixão e desatar o nó da raiva. A mulher ferida pela traição, reconquista o que lhe é roubado, ao lado de tantas outras convivendo no mesmo espaço de guerras e bombas, ocupado por silenciosas exiladas e massas inertes. O ato final se arma de “balas de leite e de dor” para exercer uma maternidade indomável que mira o “mundo lamacento”. Grace constrói o seu libelo feminista com o apoio da fúria trágica de uma Medéia inconformada com o estado de dependência, levada a agir com a beligerância gestada na luta interior. O sentido grego de destino é contestado pela forma como impulsiona a mulher à ação de recusa a um mundo que insiste em vencê-la. É uma Medéia materializada, não apenas pela reação ao domínio do homem, mas à fixação a papéis atribuídos a ela milenarmente. “Matar teu pai” atualiza os sentimentos de amor e ódio, em meio a imigrantes perdidas de sua origem ou alienadas com suas bolsas de grife, sobrevivendo de bugigangas da moda. Da explícita perspectiva da autora, que a cena final confirma, o texto se propõe com sua poética rascante a ser um “agit-prop” (agitação e propaganda) de urgências femininas. A diretora Inez Viana explodiu a cena com a cenografia, assinada por Mina Quental, que acumula lixo eletrônico e embalagens descartadas, dividindo o espaço com um sofá horizontalizado, que sublinha a geometria do palco. A iluminação de Nadja Naira e Ana Luzia de Simoni acrescenta, com a sonoridade expandida, outra reverberação ao ambiente bélico do monólogo. A presença das Meninas da Gamboa (grupo de 14 mulheres da terceira idade) ritualiza um coro, que menos comenta e mais contrasta. Debora Lamm vive essa Medéia dos nossos tempos com lembranças do trágico e vivências do drama. Menos hierática, como sugerem os clássicos, e não tão carnal quanto aponta a paixão do discurso, a atriz empresta, com voz teatralmente gutural de início e postura algo declinante até a tensão final, sincera adesão à personagem. Dominando as palavras com imperturbável entrega, entoando canto judaico, deixando que se ouça com clareza o clamor de Medéia, Debora Lamm demonstra variantes de seu temperamento de atriz.