domingo, 11 de dezembro de 2016

Temporada 2016

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (11/12/2016)

Crítica/ “Leite derramado”
Alegoria da vida brasileira em um brado retumbante

Na forma, mais do que no teor, que “Leite derramado” estabelece o contrapondo da cena teatral com a escrita literária. No livro, há uma narrativa que se fixa a partir da construção de  individualidade ambientada na nacionalidade. No teatro, é o Brasil que se faz personagem central da tragédia coletiva. Chico Buarque, autor do original, detalha as lembranças e devaneios de um homem diante de sua exposição como classe social. Roberto Alvim, adaptador para o palco, explode o quadro pessoal em imagens que se decompõem em estilhaços de significados. O velho Eulálio, que completa 100 anos, vive os estertores da existência em hospital público, refazendo a trajetória de sua vida, que se confunde com a longevidade, perversa e imutável, da vida brasileira. Testemunha de variadas manifestações de poder, porta-voz de preconceitos seculares, ator na representação da decadência social, e vítima de sua paixão por uma mulher, delira por memórias que desnudam a si e ao país. Na transcrição de Roberto Alvim, situações se transformam em símbolos, falas em exaltações e o centenário do moribundo em manifestações de 500 anos de elos políticos e sociais. O caráter individual dos sentimentos se esfacela em indistintas referências, sem se apropriar da circunstância (a senilidade às portas da morte) ou reproduzir a interioridade de sensações (a mulher amada e sua traição desaparecem). Os impulsos intimistas se transfiguram em exaltação épica, sonorizada com trilha ilustrativa. Ao contrário do desenho de som com suas oportunas intervenções, a seleção musical é de menor invenção, perfilando a obviedade de “Aquarela do Brasil” com a versão crítica de “Pra frente Brasil” e o anúncio de um outro dia de “Apesar de você”. Mas a estética singular do diretor cria painel ruidoso de som e imagem de aparência ilógica e poética simbólica, que inverte a continuidade do relato e subverte a percepção. No monólogo de um Eulálio vestido como prócer da Velha República, as figuras que o cercam trocam de peles. E  enfermeira ganha rosto de índia, fidelidade serviçal,  poderes do candomblé, discurso escravagista é desmentido na alusão ao saci e presença de moscas hospitalares rondam podridões. Ainda que cifrada e demarcada por contexto expandido, a encenação se impõe como ritual assombrado de uma nação com divisões seculares. Juliana Galdino, imponente e hierática em confronto com o estado terminal daquilo que Eulálio representa, é a intérprete absoluta de uma alegoria cênica que ressoa como brado retumbante.