quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Temporada 2016

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (30/11/2016)

Crítica/ "Gritos"
Quadro vivo de realidade agônica

A coerência, mais do que a inquietude, determina a evolução do trabalho da companhia Dos à Deux, que permanece fiel à sua originalidade formal e dramaturgia onírica. O movimento se realiza na lentidão e se deixa ver na penumbra. Os atores contracenam com bonecos em fusão de imagens corporais e silêncios visuais. As narrativas cênicas surgem da voz surda do desenho gestual como figurações de sentimentos de solidão, violência, morte, memória e amor. Desse universo de sensações, eclodem fragmentos dramáticos para ilustrar quadros vivos de realidades agônicas. Em “Gritos”, a décima primeira montagem do grupo, criado na França em 1998 e hoje com estadias no Rio e em Paris, há uma pequena mudança de eixo na técnica de manipulação. Os três poemas (“Louise e a velha mãe”, “O muro” e “Amor em tempos de guerra”) que compõem berros sem sons, são absorvidos pelos corpos da dupla André Curti e Arthur Luanda Ribeiro, duplicados em formas criadas. Com proporção humana e rostos definidos, os bonecos se prendem, como extensões vivas e ilusoriamente autônomas, à pulsação dos atores. Respiram ao ritmo do seu duplo, atuam como reflexos e se mexem em
 pas-de-deux. Intérpretes simbióticos de velhos preconceitos, da perda da razão entre muros que dividem, e da vida que continua nos despojos de brutalidades, orquestram os membros em compasso único de poética múltipla. A cenografia de aramados desenha a trama de significados em igual frequência com que a iluminação de baixa intensidade revela zonas sombrias. A trilha sonora, onipresente nos 90 minutos de duração do espetáculo, sonoriza em tom serial o andamento da gesticulação, corporificado na mudez e ação metafórica. O prolongamento das cenas, contido na caixa escura do palco e confinado na sugestão exacerbada dos sentidos, exige do espectador partilhar, quase sensorialmente, do que lhe é mostrado. Há que se ter disponibilidade para penetrar nas áreas de pouca luz e ruídos silenciados e alcançar o túnel ilusionista que leva a um espaço de reversão de tempo. Quadros de beleza plástica, como o nascimento da criança e os rostos fortes das criaturas que emergem dos atores, são determinantes na criação de uma estética que se mantém sólida nos seus fundamentos e renovada no modo como se desdobra. André e Arthur, depurando a delicadeza da movimentação e dominando a linguagem sutil, atingem a maturidade de uma investigação em pleno voo.