quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Temporada 2016

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (26/10/2016)

Crítica/ “Chica da Silva, o musical”
Arrebatada definição de papéis

Renata Mizrahi não se acomodou à fórmula do musical com seu código fechado de ação ilustrada por música, muito menos ao tratar a história da escrava do Tijuco como trivial reprodução do conhecido. Estabeleceu planos narrativos, em que o núcleo central é a história condensada de Chica, e o desdobramento, a situação do preconceito nos dias de hoje. A passagem entre os tempos é integrada e os devaneios do sonho libertário acompanham, com sutil pontuação, os primeiros passos da consciência. No paralelismo das épocas e na equalização temática, Renata Mizrahi sustenta o aspecto histórico com a mesma segurança com que apoia o naturalismo do conflito na atualidade, e evoca, sem pieguice, o escapismo lírico. Texto fluente, elaborado na construção e de ambições bem medidas, tem na música o elemento que equilibra os diversos níveis dos relatos. Ser negra para Chica representa a sobrevivência ao peso da escravidão. A sonhadora Crioula vive a negritude como reiteração do humano. E a Chica de hoje sofre o preconceito, mas afirma a sua individualidade como etnia e cultura. As três Chicas adquirem ao longo de suas vivências, a consciência de onde as pretendem confinar e das forças para conquistar o seu lugar. O diretor Gilberto Gawronski articulou a presença de cada uma delas na mesma linha rendilhada do cenário de Karlla de Luca. O artesanato dos círculos-peneiras que decoram a cena se repete na costura da montagem rústica e ritualística em superexposição de confronto. A maior qualidade do espetáculo, sustentada pela acuidade da autora, está na dosagem da carga de emoção indisfarçável provocada na plateia, que reage com vozes participantes e lágrimas discretas. A comunicabilidade direta facilita a compreensão da tripla personificação e da permanência de atos de rejeição em uma sociedade de raiz multicultural. E esse quadro acrescenta-se a trilha, que reúne canções de Jorge Ben Jor e Luiz Melodia, direção musical de Alexandre Elias e quarteto de bons músicos. A iluminação de Renato Machado delimita áreas no restrito palco. Luciana Victor, Tom Pires e Antônio Carlos Feio respondem rotineiramente a personagens apenas delineados. Ana Paula Black empresta dignidade e beleza às poéticas utopias da mucama Crioula. Vilma Melo, como Chica da Silva e a sua homônima na atualidade, adota atuação arrebatada, que não compromete a passagem de uma a outra, em clara e distinta definição dos papéis.