quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

Temporada 2016

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (20/1/2016)

Crítica/ “Brimas” 
Ligação de amizade que alimenta a tolerância e a convivência 

Ester e Marion conversam na cozinha, preparando os quibes que serão servidos no velório que transcorre fora das vistas da plateia. Uma judia, outra católica, chegaram ao Brasil muito jovens, vindas do Egito e do Líbano. Unidas pelas dificuldades de sobrevivência e pelas diferenças culturais e religiosas, transformaram a cozinha em território de convergência de tolerância e amizade, ponto de encontro no novo país que as ajudou a alimentar suas novas vidas. As “brimas” (primas pronunciada com sotaque árabe) que assam tabuleiros de salgados para sustentar a permanência no lugar que as acolheu e as famílias que criaram, convivem no plano doméstico com diferenças culturais e memórias de diásporas. A comida, como expressão de afeto, une o que se separou pela fome das guerras de desunião e preconceitos. A narrativa singela das atrizes Beth Zalcman e Simone Kalil é inspirada em suas avós e nas lembranças agridoces de vivências reais, que a iminência da morte revalida como passaporte que libera fronteiras. As atrizes-autoras capturam essas vozes do passado para sancionar o presente e evocar as dificuldades da travessia para celebrar a chegada. A manipulação do alimento deixa de ser tarefa cotidiana para adquirir a função simbólica de manter tradições e encontrar outros significados para sentimentos interrompidos. Das línguas restam o sotaque e a gramática emocional de saber que em árabe não existe o verbo ser, senão nos tempos passado e futuro. Da imigração fica a sede insaciável de beber água por aqueles que não conseguiram ultrapassar o mar. Na direção harmoniosa e delicada de Luiz Antônio Rocha o espaço se abre para uma conversa na cozinha, em que vida e morte são embaladas pelo humor de comadres e solidariedade de parentes. A cenografia de Toninho Lôbo, que não escapa à óbvia imagem de malas, surpreende nos adereços. Transforma os tabuleiros-assadeiras em delicados ícones de religiões que presos à parede compõem quadro referencial de unidade ecumênica. A dupla de atrizes marca com gestuais e vozes, que caracterizam origens e personalidades, as diferenças que Ester e Marion aproximam pela mútua admiração. Simone Kalil, com figurino severo, dá tratamento carinhoso a libanesa. Beth Zalcman, com figurino colorido, veste a egípcia com humor solar.