quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

Temporada 2016

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (6/1/2016)

Crítica/ “O livro dos monstros guardados”
Quadro vivo de distúrbios inconfessáveis

Rafael Primot desvenda em diferentes registros dramáticos, uma escala de inconfessáveis distúrbios, pequenas perversidades e doentias percepções. Mania de limpeza derrubada pela traição sem assepsia, se mistura a sexualidade distendida ao limite da transgressão, enquanto menina pressente a complexidade da vida adulta e menino é atraído pelo mistério dos solitários. A obsessão por atropelar cães vadios se assemelha a de quem escolhe viver confinado em um sanatório, e o serviço de ajuda psicológica por telefone se transforma em atendimento, perigosamente, direto. São comportamentos no desvio do padrão que arranham o bizarro e convivem com a crueldade, compondo quadro que ressalta as dissonâncias, mais do que fundamenta as atitudes e permite a composição de painel social. Tratados como casos, ganham destaque na medida da sua estranheza, levada ao ponto da curiosidade. Primot trata cada uma das histórias como monólogos que procuram manter atmosfera intrigante em aparente desconexão entre elas. O autor distribui, com alternâncias da tensão expositiva, a incógnita que cada monólogo propõe ao longo de narrativa restrita às suas singularidades e impressões invulgares. “O livro dos monstros guardados” é um texto com melhor acomodação ao literário do que  sensível à maleabilidade cênica, o que estabelece algumas limitações ao diretor. Os sete monólogos se entrecruzam pela continuidade fracionada da histórias, deixando os atores todo o tempo no palco, numa ciranda estática de palavras frontais. A dupla de diretores, Rafael Primot e João Fonseca, não escapou desse confinamento formal, restringida pela particularidade da fala direta e a necessidade de criar exibição de peculiaridades. Na medida do desafio, saem-se bem, dinamizando a continuidade narrativa e assegurando aos atores a possibilidade de manter o ritmo da interpretações. A cenografia simplificada de Nello Marrese recorre a plaquinhas que identificam o nome e o espaço dos personagens, em evidente demonstração das dificuldades da dramaturgia cênica na transposição do texto. O elenco, para além das atuações individuais, enfrentam com viva presença as zonas silenciosas que antecedem às suas intervenções. Laila Zaid confere ar tragicômico à voluntária do Centro de Ajuda à Vida que se faz justiceira nas suas atitudes individuais. Carolina Pismel, com voz e corpo infantilizados, investe na ingenuidade dúbia da menina que descobre em si as manipulações dos adultos. Eron Cordeiro compõe com alguma ironia o empregado da videolocadora que, por tédio e estresse, mata cachorros. Rafael Primot reforça, fisicamente, a insanidade de quem prefere o confinamento à loucura exterior. Leandro Maciel, empresta o seu tipo, ao homem que se entrega a variadas práticas sexuais. Guilherme Gonzalez está menos à vontade no menino que luta contra problemas na bexiga. Jefferson Schroeder desenha com precisão corporal o homem que persegue a limpeza até sucumbir à revelação da sujeira.