quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Temporada 2015

Retrospectiva do Ano Teatral
Kiss me Kate
Este ano não foi igual aquele que passou. Foi pior. Os mecanismos de produção que já vinham se mostrando ultrapassados, foram atingidos pela crise econômica e pelos respingos da Lava-Jato. Os editais da Petrobras e da Eletrobras desapareceram, a Funarte confessou a falência de seu modelo de fomento, a presença estadual que era restrita, se anulou, restando a lei municipal que tem um caráter mais distributivo do que criteriosamente seletivo. A saída de Beatriz Radunsky da programação do Espaço Sesc deixa a dúvida sobre a permanência de uma política de ocupação arrojada e diversificada de linguagens. Em alguns casos, esse enxugamento acentuou tendência, que parece se confirmar a cada ano, de um certo voluntarismo, em que grupos mais ousados ou atores-produtores de carreira emergente se arriscam, com a cara e a coragem e com poucos recursos, a se lançar à cena pelo desejo de dizer algo que lhes parece essencial, ou experimentar caminhos que ainda não sabem aonde os leva.
Caranguejo Overdrive
 Caranguejo Overdrive, texto de Pedro Kosoviski e direção de Marco André Nunes sintetiza, exemplarmente, esse momento da cena carioca. Num fluxo, de tempos e formas, a montagem não dá trégua à estimulação sensorial. Da exposição direta de um ator falando ao microfone ao desenho traçado diretamente nos corpos, o espaço de ver e ouvir se decompõe em cenas estilhaçadas, capturadas como possibilidades de sensações visuais e auditivas intensas. A sensibilização é o meio através do qual, autor e diretor interpretam referências histórias, apropriam-se do jogo político e se relacionam com o contemporâneo. A brutalidade da pobreza de ontem reverbera nas citações a de hoje em diálogo entrecortado e intermitente entre estéticas contrastadas e falências sociais.
Puzzle (D)
Estamos Indo Embora,  estreia de texto e direção de Luiz Felipe Reis, surpreende pelo domínio de meios expressivos e depuramento na execução, em corajosa tomada de posição  sobre a ação do homem nas transformações climáticas. Utiliza uma interseção de linguagens que converge para uma área  para além de códigos estabelecidos. Pahoma, segunda direção teatral do coreógrafo João Saldanha, texto e encenação de Saldanha, se mostra em permanente movimento, em que teatro e dança são meios dos quais se serve para ir na direção de “um lugar sem lugar dos nossos sonhos, as utopias”. O Tempo Festival apresentou Puzzle (D), a última parte da tetralogia de Felipe Hirsch visto na Feira do livro de Franckfurt há três anos, que desmonta as peças do quebra-cabeças de um país através de vozes furiosas e dissonantes, que acabam por formar um quadro de poética contundente. 
projeto brasil
A Companhia Brasileira de Teatro circulou por propostas cênicas extremas, sempre com muito vigor e força transgressora. Em projeto brasil, debruça sobre a instabilidade dos significados de uma nacionalidade e dos fragmentos de uma teatralidade para sondar percepções e explorar rastros de emoções. Já em Krum, Marcio Abreu, diretor da companhia curitibana, estabelece vigoroso território cênico para que os corpos exponham ”máscaras de sofrimento, que um dia serão uma espessa camada de cinza”. Salina, encenação dos diretores Ana Teixeira e Stéphane Brodt, mergulha na ancestralidade da África profunda, desvendando imaginários, sacralizando o humano. Poema heroico, confirma a fidelidade do grupo Amok a um teatro étnico-antropológico.
Mantenha Fora do Alcance do Bebê
 Dois textos se destacaram. Diogo Liberano, autor e ator de O Narrador, confronta a literatura dramática com o despojamento do jogo cênico. Só, diante de folhas de papel que após a leitura são jogados ao chão, destila a emoção de uma amizade perdida por inevitabilidades da existência. Silvia Gomez, em Mantenha Fora do Alcance do Bebê, expõe o absurdo da realidade em sua lógica desordenada, em narrativa com diálogos afiados e atmosfera surreal, denunciando a padronização da natureza animal dos instintos.
O teatro realista recebeu, tanto em Race, quanto em Abajur Lilás, transcrição  nos próprios termos do gênero. A psicologia social do drama de David Mamet foi recriada pelo diretor Gustavo Paso com a racionalidade expositiva de uma denúncia. Enquanto o realismo político de Plínio Marcos reencontrou a sua contundência física e verbal na direção de Renato Carrera.
Meu Saba 
A cenografia de Bia Junqueira, nos três trabalhos vistos nesta temporada, se revela de tal modo participante da cena, que pode ser considerada uma coautoria com a direção. Em Meu Saba, constrói um percurso terroso e desértico que aponta para a arma que assassina a tolerância. Em Santa explode o espaço do Teatro do Tom Jobim com movimentos oníricos de um cenário que abriga enevoada relação de um casal. E em Santa Joana dos Matadouros insufla com o uso múltiplo de camisetas a troca de pele da tradição brechtiana.

Os musicais, ao que parece, ficaram imunes à falta de patrocínio, a julgar pela quantidade de estreias que se espalharam pelo ano. A quantidade prejudicou a qualidade, e foram raras as criações nacionais que escaparam ao biográfico e ao convencional. Mas foi, exatamente da convenção, que a obra de dois gênios (Cole Porter e William Skakespeare) produziu a melhor comédia musical de 2015. Mais uma produção de qualidade e rigor da dupla Charles Moller  e Claudio Botelho, Kiss Me Kate se destacou com competência num mercado desordenado.