quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Temporada 2015

 Crítica do Segundo Caderno de O Globo (25/11/2015)

Crítica/ “Race”
Imagem desfocada do preconceito

David Mamet, autor de “Race”, coloca em perspectiva dramática questões candentes da sociedade americana, universalizando seu alcance pela agudeza de observação no confronto dos argumentos. A ironia e a dúvida, que comandam seus diálogos, repletos de perguntas desconcertantes e afirmações não concluídas, estabelecem o terreno arenoso em que se movem personagens de fala cínica e olhar dúbio. Os conflitos, ligados a disfunções familiares, desonestidade intelectual ou exposição de preconceitos, são reveladores do esgarçamento de uma teia social à beira da ruptura. Não há  áreas de escape para além das evidências dos atritos com que máscaras e injustiças arranham conceitos e idealizações, e diante dos quais Mamet aponta a hipocrisia das convenções. Em “Race”, um homem branco, acusado de estuprar uma mulher negra, contrata para defende-lo escritório de advogacia cujos sócios são também um branco e um negro. É secundário se a causa deve ser aceita ou será vencida. Se razões éticas ou manobras jurídicas devem ser invocadas. O texto está distante do drama de justiça e da trama policial, o que se constrói são os escaninhos que abrigam as várias formas preconceituosas de ideias estratificadas. Nas atitudes residuais, nas palavras que induzem e na obscuridade das intenções se desvenda o que está por trás da ação. Pergunta-se a procura de respostas que se querem incontestáveis, como monólogos em série que mostram a extensão das mentiras. Gustavo Paso conduz o espectador por essa trilha dissimulada com o cuidado de não demarcar limites e indicar rumos. A direção deixa que o autor balize a montagem e que das contraditórias vozes de cada um surja a verdade de todos. Com apoio da fluente tradução de Leo Falcão, da cenografia sugestiva de Luciana Falcon e Gustavo Paso, da iluminação sutil de Paulo Cesar Medeiros e da trilha precisa de André Poyart, o diretor avança com simplicidade na costura narrativa de Mamet, em dialética cênica que acompanha as diversas camadas dos argumentos, fiel às rubricas. A arquitetura bem desenhada do texto, ao qual Gustavo Paso seguiu com rigor, respeito e entendimento, permite que se acompanhe com prazer uma dramaturgia inteligente. O quarteto de atores, que têm interpretações adequadas, está afinado em tonalidade um pouco acima da sonoridade cáustica das provocações do texto. As atuações adquirem força sanguínea e raiva represada, que trazem ao primeiro plano o que poderia ganhar mais se projetadas como ambiguidades. Yashar Zambuzzi sofre do efeito contrário, pela excessiva timidez e contração do  rico empresário acusado de estupro. Heloisa Jorge, a advogada assistente, se mantém num único registro, sem variantes na linearidade de sua contracena. A dupla Gustavo Falcão e Luciano Quirino leva às altitudes da explosão os movimentos subterrâneos dos advogados centrais da trama. Adotam uma carga de intensidade nervosa que contraí a racionalidade do debate. Mas ambos, mesmo seguindo uma linha que poderia ser atenuada, emprestam dignidade e segurança no mergulho interpretativo em personagens complexos.