quarta-feira, 7 de outubro de 2015

Temporada 2015

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (7/10/2015) 

Crítica/ “Projeto Brasil”
Rodrigo Bolzan empresta voz ao tempo do fim

A ousadia está na tentativa de falar do Brasil de agora, no momento em que se vivem as contradições de sempre. São usadas palavras recolhidas para buscar significado para tudo aquilo que já foi dito, fragmentos de discursos para lembrar, mas falados como se fossem para esquecer. Tudo está instável: o começo no fim, o presente sem história, a velocidade sem narrativas. A Companhia Brasileira de Teatro de Curitiba se debruça sobre uma certa geografia humana que experimenta o seu tempo, no que a atinge no espaço das dúvidas e a desorganiza nas periferias do pensamento. Vozes entrecortadas, música interpretada em linguagem libras, corpos desequilibrados, performances dissonantes, os recursos variam na dramaturgia coletiva, lançados como impressões em permanente desmonte. Uma fala direta em espanhol ganha destaque quando restam apenas vários microfones no palco vazio. O debate parlamentar sobre novas formações familiares é ilustrado por beijos entre atores, que se estendem à plateia. O homem que se diz incapaz de dar conta de “tudo muito”, começa a falar, de modo entrecortado, da persistência do medo até explodir na fluência do imaginário. Estilhaços de dramas e cacos de entrechos, instalações luminosas e construções sonoras, as cenas se sucedem independentes e desarrumadas, numa formalização em que as imagens procuram desilustrar a palavra, desfazê-las em pedaços de teatralidade e confirmá-las como rastros de emoções. Para tanto, corpos nus revelam hipocrisias e movimentos animais, a força da violência, numa sensibilização dos efeitos, às vezes de maneira explícita, de outras, contrastada. A fricção de tantas possibilidades é o que o diretor Marcio Abreu experimenta neste caminho de que não se conhece o ponto de chegada. A coragem de encenar discursos como do ex-presidente do Uruguai José Mujica e da ministra da Justiça da França, Christiane Taubira, e de lançar perguntas, que estão longe de respostas, demonstram a inquietude da Companhia por sondar outras percepções. É uma investida em meios expressivos, ainda sem contornos delineados, que tateiam estímulos dispersos de um universo amplificado. O impacto visual que provoca a cenografia circular de Fernando Marés e a iluminação de Nadja Naira e Beto Bruel, tem perfeita correspondência na intensidade dos movimentos de Marcia Rubin. A sonoridade do músico e  cantor de Felipe Storino acrescenta elementos decisivos no projeto estetizante desse Brasil desfocado. O elenco responde com garra física e destemor interpretativo às exigências corporais e vocais de larga extensão. Nadja Naira com menores intervenções, compartilha o prolongado beijo coletivo de palco e plateia. Giovana Soar surpreende no canto silencioso de “Um índio”, de Caetano Veloso, desnuda-se nas dores da agressão, e reproduz o vazio de um final de festa. Rodrigo Bolzan domina a cena em cada uma das suas participações, mantendo-se absoluto ao dar voz a uma análise política, corpo à nudez de monólogo candente e atitude à constatação de  que “vivemos um tempo do fim”.