segunda-feira, 30 de março de 2015

Temporada 2015

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (29/3/2015)

Crítica/ Autobiografia Autorizada
Revisitando a infância interiorana

O título bem-humorado do espetáculo em que Paulo Betti é autor, diretor (ao lado de Rafael Ponzi) e ator indica, em boa parte, o que essa “Autobiografia autorizada” pode oferecer. A infância de Paulo nas cidades de Rafard e Sorocaba, interior de São Paulo, até aos 18 anos, quando chega à capital, se parece a uma viagem afetiva por geografia emocional que explora regiões de contornos fantasticamente realistas. São lembranças impelidas pela pobreza  da imigração, religiosidade afro, ingenuidade do universo caipira e pela epifania que desencadeia o fluxo dos sentimentos. Ao longo do tempo, Paulo Betti anotou em um caderno  impressões sobre a sua origem, os 15 irmãos, a convivência familiar, o medo de fenômenos desconhecidos, a dureza do pouco dinheiro e a fartura das descobertas. Não há qualquer complacência queixosa ou saudosismo melodramático, mas tão somente, biografia amorosa descrita como experiência formadora e vivência evocativa. As condições adversas, que marcaram a família Betti, são tratadas com o mesmo afago com que toca nos mistérios escondidos em rezas e curas de quebranto da avó e da mãe. A delicadeza da narrativa está ainda na  forma como exibe os objetos, guardados por décadas, e que representam a matéria física do passado revivido. É o arco que roda, preso a um arame amassado. O pião de madeira escurecida, que gira pela habilidade infantil intocada na vida adulta. O facão de gume cego que sangrou muitos porcos. Com tão ricas fontes biográficas, é compreensível o desejo do autor-diretor em incluir tantas informações quanto os apelos da memória afetiva. A frustrada passagem pela rádio, as piadas sobre as dublagens e a desconexão do tempo para fugir da linearidade são dos poucos momentos em que o monólogo perde o ritmo, interferindo na docilidade como se conduz o percurso, sem vaidade e exibicionismo. O cenário em papel de Mana Bernades funciona como tela para projeções e esboço da pequena casa familiar, confirmando a simplicidade e o ambiente doméstico que dominam a montagem. O ator Paulo Betti demonstra a mesma sinceridade e despojamento do autor Paulo Betti. Sem artifícios, comunicando-se diretamente com a plateia, dosando a emoção com o humor, estabelece conversa amena com o público, expondo intimidades. Com objetos que adquirem carga simbólica na sua história pessoal, e na busca de significação que os nomes  podem conter, Paulo Betti cria o ambiente para desenrolar causos de uma vida áspera, mas encantatória, de um caipira que chegou com dificuldade ao mundo.