quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Temporada 2014

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (10/12/2014)

Crítica/ Galápagos

Em um bar, navegando até à liberdade de um horizonte ilhado
De origem, o texto de Galápagos é uma ideia da dupla de atores em cena, Paulo Giannini e Kadu Garcia, desenvolvida por Renata Mizrahi, que assina a narrativa. De certo modo, determina um desvio na dramaturgia de Renata, fixada no realismo, do qual os seus melhores exemplares autorais são “Os sapos” e “Silêncio”. Ao concentrar em um bar dois homens de sensibilidades distintas – artista cego e entediado e pai de família frustrado – altera os rumos da sua escrita cênica na viagem existencial em que o ponto de partida é o desejo difuso de mudança, e o de chegada, o de encontrar uma ilha apaziguadora de mistérios ancestrais. O percurso, em que um expõe o seu cotidiano medíocre e o outro o escuta com monossílabos tolerantes como resposta, é embalado pela voz de cantora de repertório intensamente emocional. Os dois únicos ouvintes desta cantora nunca visível formam a plateia solitária de suas próprias vozes internas, num embate, a princípio, surdo e dissonante, em seguida, ruidoso e solidário. Entre eles, paira o desconhecido que se interpõe a cada movimento de aproximação, que a partir do confinamento do espaço do bar navega até a liberdade da paisagem ilhada por amplo horizonte. Renata Mizrahi mantém o seu domínio do diálogo, já demonstrado em textos anteriores, acrescentando-lhe tonalidade poética que pode apontar outras cores à sua dramaturgia. No prólogo, quando um dos personagens descreve a natureza animal da sua busca da identidade humana, inscreve dimensão lírica ao rigor dramático. Isabel Cavalcanti demonstra apreensão quase sensorial do texto. A sua direção se articula através de sons e invisibilidades, que deixam entrever  intrigantes razões e impositivas ausências. A plateia se transforma em sonoridade como se fosse a representação da cantora que não se vê e para a qual se dirige, permanentemente, o olhar dos atores. Um pequeno ruído, quase na última cena, situa a passagem de tempo entre as amarras do início e o aportar do fim. A cegueira se torna metáfora para que a diretora acentue o caráter tátil do que encobre o que não se deixa ver e aquilo que se revela, apenas nos detalhes, ao longo da ação. O cenário de Aurora dos Campos na horizontalidade do balcão de bar e nas cortinas esvoaçantes de fundo compõe com a iluminação de Renato Machado a contracena visual, emoldurada pela voz dramática e poderosa de Simone Mazzer. O elenco, responsável pela concepção original e, portanto com indisfarçável intimidade expressiva com o material dramático, não deixa dúvidas sobre a adesão como intérpretes ao roteiro de que foi inspirador. Há cumplicidade evidente entre ambos, capaz de sustentar a atmosfera de mistério que impulsiona cada palavra e gesto. Kadu Garcia adota ar bonachão para projetar a insatisfação familiar e profissional do personagem, explorando, sem maior comedimento, seu tipo físico em atuação mais naturalista. Paulo Giannini, mesmo que adote um certo secretismo para o homem de aguçada visão interior, resvala nos excessos de composição rígida.