domingo, 10 de agosto de 2014

Temporada 2014

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (10/8/2014)

Crítica/ The Old Woman
Pantomima amarga de uma máquina teatral 
Na década de 70, quando Bob Wilson apresentou no Brasil pela primeira vez construção cênica que se estabeleceria como uma das linguagens teatrais mais integralmente autorais da cena contemporânea, que a cada nova vinda (várias a São Paulo, poucas ao Rio) o diretor reafirma o caráter fundador da sua expressão artística. A bem-vinda temporada carioca de The Old Woman ainda provoca impacto com sua dramaturgia cênica, em que imagem, luz e som formam equação ascética de tempo e espaço. Como rejeita qualquer conceituação psicológica ou emoção dramatizada que comprometa a abstração da cenaWilson propõe a alquimia de elementos como plasticidade e ruídos em quadros seriados. Nesta versão de texto do russo Daniil Kharms, autor da primeira metade do século passado de obra entre o absurdo e o surreal, fragmentada e de humor amargo, o diretor submete a sua máquina teatral à lembrança do “music-hall” e da pantomima de cômicos circenses. A morte de uma velha senhora que assombra as atitudes e os sentimentos de um homem e seu duplo, do personagem e o narrador, provoca interseções visuais e sonoras em cadeia no diálogo contrastante, em inglês e russo, de bufões de máscara branca. No proscênio, diante de telão, a dupla histriônica desenha a moldura que delimita a geometria dos movimentos, a dimensão e o voo dos objetos e o atrito entre palavra e gesto. É o prólogo para que os atores, na cena seguinte, suspensos em balanço, ao ritmo evocativo de Beckett, se apresentem no “Poema da fome”, que não sem motivos, termina com a indicação dos subterrâneos da bufonaria a seguir: “E então começa o horror”. As imagens intangíveis que caracterizam Wilson como encenador se apoiam na sofisticada e fria iluminação do neon e no foco na decomposição dos corpos, em aparente dissociação entre sons e caretas. No espaço milimétrico de integração entre texto e cena, a narrativa é construída em quadros vivos que desencadeiam formas, pinceladas, traços e telas, em contraponto à exposição verbal, que desencadeia os sentidos de sua apreensão. A apropriação da obra de Kharms se faz pela estética de Wilson, pelo que as palavras insinuam, e não por aquilo que, efetivamente, significariam. Mas por via transversa, a montagem encontra no gênero e na comicidade populares o corrosivo tom de desalento que se infiltra pelas frestas dos fragmentos da trama que se deixa perceber. O ator, no imperioso e sólido dispositivo cênico de Bob Wilson, pode se tornar mais um dos componentes visuais, uma presença no cenário, mero bailarino de limitada expressão coreográfica. Mikhail Baryshnikov e Willen Dafoe estão distantes da função secundária de figurantes de um painel. Atores e bailarinos, cantores e palhaços, cumprem com matemática precisão de gestos e vozes, nas marcas de luz, e nos passos coordenados, a rígida sincronia das formas desenhadas. Mas a individualidade interpretativa se manifesta na modulação com que circulam na duplicidade das intenções dos diálogos e na autoridade vocal e corporal como transmitem os movimentos interiores, pulsantes dúvidas, de figuras à beira do patético.