quarta-feira, 2 de julho de 2014

Temporada 2014

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (2/7/2014)

Crítica/ Fala Comigo como a Chuva e me Deixa Ouvir
 
Incomunicabilidade líquida
Peça curta de Tennessee Williams, “Fala comigo como a chuva e me deixa ouvir” traz um determinismo existencial que estrangula os sentimentos em voz interior incapaz de romper os limites para a entrega ao outro. O casal em dúvida quanto à extensão do que sente, ligado pela dificuldade de se deixar amar, mas sem força para abandonar a convivência, estabelece diálogo em que cada um se faz o seu próprio interlocutor. Esses monólogos internos, condenados a reverberar expressão silenciada, embalam intimismo e contenção, solidão e melancolia, desgaste e fracasso. Fiel à dramaticidade do autor, a narrativa tem a intencionalidade da palavra íntima, aquela que sussurra a dúvida mas se retrai quando precisa se revelar. O texto, concentrado, vive do fluxo de sensações, em ritmo descritivo e tonalidade declinante. O diretor Ivan Sugahara abandonou a linha camerística deste dueto para buscar a musicalidade da palavra solta, dita a partir do gesto e do espaço aberto. Ambientada num casarão da Ladeira da Glória, a montagem é conduzida pela ação e pelo movimento de atores e espectadores, levados a percorrer cômodos, jardim e a área da piscina em cenas itinerantes, que acabam por se tornar um tanto dispersivas no sentido inverso do clima onírico. A plateia compartilha da preparação de refeição na cozinha ou dos mergulhos dos atores na piscina, mas nem sempre  o diretor consegue integrar o clima poético à peregrinação pela casa. O sol desses dias de inverno carioca – o espetáculo é apresentado em duas sessões, sábados e domingos, à tarde – colabora nos quadros mais delicados, numa lembrança da luminosidade das pinturas de Edward Hopper, infiltrando-se por entre vidraças. O cinema, também presente na estrutura da cena, é um elemento que amplia o descompasso com a filigrana dos sentimentos. Como a chuva é fundamental na narrativa, já no título e como integrante indissociável da sensibilidade dos personagens, a sua referência se torna casual. A casa é apenas cenário, não se procurou a memória de seus antigos moradores, ou vestígios da passagem dos anos sobre a construção. Em cada cômodo há um arranjo cenográfico sem atmosfera envolvente. A introdução de voz em off e de textos complementares evidenciam a necessidade de “alongar” o texto enxuto, e, uma vez mais, demonstra o descompasso entre a interioridade das palavras e a exteriorização visual. Ângela Câmara e Saulo Rodrigues se desdobram como intérpretes-condutores, buscando a presença emocional dos personagens em meio a intensa movimentação física. A ponte entre esses dois planos acontece, ainda que em oposição e de modo surpreendente, na cena em que mergulham na piscina. A água se transforma num elemento dramático para que o casal, através de braçadas e toques, deixe ouvir a líquida incomunicabilidade que corre por entre eles.