domingo, 16 de março de 2014

Festivais


1ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo
São Paulo - A primeira edição da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp), com dez espetáculos de amplo espectro de linguagens, reflete a acuidade e inteligência teatral de curadoria que não  se desviou de provocativas ofertas de recepção à plateia. São várias e até conflitantes direções do olhar, capazes de lançar petardos conservadores Sobre o Conceito de Rosto no Filho de Deus, deformações  ambíguas em Bem-vindo à Casa, coreografia verbal em Anti-Prometeu, manual politico em Escola, e humor agit-prop em Ubu e a Comissão da Verdade. As muitas rupturas na forma e quebras narrativas, a ressignificação da gramática cênica e a amplitude do suporte plástico se revelam em montagens que subvertem cânones, atritam-se com sensações e sentimentos limítrofes e dilapidam  e mutilam o corpo teatral numa cirurgia de extirpação e recomposição de meios. É grande a expectativa pela segunda edição, já com data em 2015: de 6 a 15 de março.
Gólgota Picnic: a frontalidade de dissonâncias 
Gólgota Picnic, criação do argentino Rodrigo Garcia apresentado por grupo espanhol, propõe ações cênicas que estabelecem mediações entre monólogos de irônica crueza e imagens de referência pictórica, numa ambientação sensorial de símbolos cristãos e consumistas. No piso do palco, centenas de pães de hambúrguer formam tapete de persistente cheiro para que os atores, reunidos num piquenique, ritualizado por fluxos alimentares, sanduíches decorados com minhocas vivas e corpos banhados de tinta em crucificações performáticas, desarticulem relações da existência contemporânea com as impossibilidades da veracidade do religioso e da expressão articulada do individual. A palavra, sempre direta e projetada na frontalidade da cena, circula nos limites de seu alcance, na tentativa de ecoar as dissonâncias do barateamento e vulgarização de vivências regidas por grifes, padrões corporais, euforias orquestradas e desejos pré-fabricados. A imagem, que na tela projeta as fissuras da grande arte como metáforas, e no palco investe na representação quase bizarra de desajustes como linguagem, atualiza o conflito. É da vinculação dos dois planos que Garcia cria a sucessão de cenas, prodigamente ilustrativas desse estado de fricção, em que o espectador é confrontado com o seu repertório receptivo (do nojo diante da proximidade do escatológico, ao riso pela exploração grotesca do corpo, e a impaciência frente ao belo e desconcertante concerto de piano). Um poderoso mergulho entre as tantas e tão instigantes prerrogativas de fruição do teatro na atualidade.
Hamlet: o camarim como representação     
Hamlet na versão do lituano Oskaras Korunovas é aberto com a dúvida do atormentado personagem – “Quem sou eu?”- com o elenco frente ao espelho da bancada do camarim, anunciando o percurso da cena como um reflexo, distorcido, maquiado, quase uma bufonaria, que conduz ao escuro do caos sanguinolento e mudo. É da imponderabilidade com que o teatro se defronta com a dissimulação e a mentira de ser aquilo que busca revelar, que esse Hamlet encena fragmentos da representação. Os camarins que ambientam as coxias, espaços atrás dos quais se armam e desarmam as tramas, são movimentados continuamente, espelhando e encobrindo o que se quer desvendar, elementos simbólicos a que se recorre como pantomina para chegar à verdade. Korunovas inverte cenas, amplia ações físicas, decompõe sentidos e reduz a personificação, criando com múltiplos anteparos um teatro sem sombras, jogando luz no que, persistentemente, não se pretende deixar ver.        
 
Eu Não Sou Bonita: mutilações do passado
Eu Não Sou Bonita, a instalação performática da espanhola Angélica Liddell, marcadamente autobiográfica, reproduz a experiência de uma mulher, abusada sexualmente quando criança, submetida a agressões morais e sociais na juventude, reprimida por instituições militares e religiosas, e esgotada existencialmente aos 48 anos. A atriz-personagem percorre cada um desses momentos, impulsionada pela vontade de se expor, de exibir tais vivências. Nesse mergulho na desconstrução do indivíduo, Liddell se apropria dos signos do universo que a violentou, reutilizando-os  com os mesmos instrumentos que a feriram. Tomando posse do  masculino que a amesquinhou, física e moralmente, reinvindica para seu corpo as mesmas armas dos homens que a violentaram. Para tanto, investe contra o corpo, mutilando-se e alimentando-se do próprio sangue, em metáfora da ceia cristã, mergulhando aos mãos em leite fervente, sugerindo sexualidade animalizada em litúrgicos rituais de negação. Antes que provocar choques moralizantes ou desconfortáveis imagens de confronto com comportamentos reprimidos, Eu Não Sou Bonita se circunscreve ao plano expositivo, buscando em secundárias referências ao cinema de Luis Buñuel e na imagística da religiosidade espanhola o que não consegue transpor, em emoção e fisicalidade,  para sua sufocante biografia