quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Temporada 2014

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (29/1/2014)

Crítica/ Ricardo III
Solitário no palco, Gasparani contracena com a informalidade do trágico

No início desta condensação da tragédia de Shakespeare, o espectador fica diante da informalidade de Gustavo Gasparani, que propõe atravessar com recursos mínimos, de interpretação e elementos cênicos, a complexidade da vilania, ambição e do contexto histórico, que são a razão mesma da narrativa. Ao estabelecer, nesta primeira aproximação, vínculo que rompe qualquer impostação trágica e prenuncia o caráter expositivo do que se verá a seguir, os limites ficam nítidos e a convenção enquadrada. Um painel com a genealogia da dinastia Plantageneta assinala graficamente as ligações entre seus ramos, os York e os Lancaster, servindo para fixar a nomenclatura e de apoiar visualmente o destino daqueles que ameaçavam a escalada de Ricardo em direção ao trono. Sob esse arcabouço, o ator, que ao lado do diretor Sergio Módena foi responsável pela adaptação, investe em contar a história, a fazer leitura encenada na qual é narrador e desempenha dezenas de papéis, ao ritmo exigido pela multiplicidade das ações cênicas e dos desdobramentos nos diálogos. Não há espaço para detalhamentos de atuação ou indicações sobre os meandros da trama e qualquer perspectiva analítica. Apesar de tantas condicionantes, o texto pode sofrer algum reducionismo, mas não simplificação, já que a forma escolhida para encená-lo, essencialmente descritiva, mantém, parcialmente, a sua integridade narrativa, permitindo que se tenha ressonâncias da grandeza original e se ouça a tradução em verso de Ana Amélia Carneiro de Mendonça. Gustavo Gasparani sustenta, como intérprete único, código verbal em que a fala de tantos personagens é nivelada a uma uniformização coloquial à serviço da objetividade da descrição. O ator domina a palavra shakespeariana na dimensão da sua força e na potência de seu alcance, mas a projeta sem a modulação da sua inteireza. A procura de preencher muitas vozes com solitária emissão, leva o ator a se movimentar continuamente e a recorrer a alguns objetos para figurar a ação - até canetas pilot se corporificam em personagens. A iluminação de Tomás Ribas é decisiva para quebrar com o ambiente de sala de aula, insinuado pela cenografia de Aurora dos Campos, ao criar áreas com teatralidade própria. “Ricardo III”, na versão Gasparani-Módena, desfaz-se de qualquer solenidade para deixar-se conduzir pela comunicabilidade, em remota didática para promover a audição do texto. Esta é uma possibilidade entre tantas de se apropriar cenicamente do texto, ainda que na atual versão tenha prevalecido a moldura em oposição aos traços da obra.