segunda-feira, 10 de setembro de 2012

32ª Semana da Temporada 2012


Crítica/ A Marca da Água
Mergulho na tortuosa mecânica do cérebro 
O texto conjunto de Maurício Arruda Mendonça e Paulo Moraes, que também assina a direção de A Marca da Água, em cena na Fundição Progresso, transita por áreas tão sutis como a memória, a solidão compartilhada, o cérebro invadido pela doença, a procura da música interior e pelo “espetáculo do nada” do cotidiano. Mergulhados em tantos e tão delicados labirintos da existência, os autores constroem personagem, uma mulher que traz desde a infância problema neurológico, que reconstitui seu percurso de volta à origem, perseguindo a sonoridade aquosa que a acompanha desde sempre. O aparecimento de surrealista peixe no fluxo da vida do casal é somente a eclosão da viagem da mulher em torno de sentimentos, aparentemente delirantes, mas que determinam os rumos daquilo que sente e da apropriação
das peças soltas do puzzle do seu passado. A inevitabilidade da morte, que é comum a todo humano, na personagem é iminência. Sofrendo de crescente acúmulo de água no cérebro, não se submete a qualquer tratamento, substituindo-o pela imersão e fidelidade à musicalidade que enche a sua cabeça de sons vitais. O presente lhe parece vazio. O futuro é semelhante ao mundo, sem perspectivas. Resta o passado como tempo de resgate. A personagem recusa ajuda médica, já que não está à procura de cura, mas de reconstruir a doença como metáfora da própria vida. Os autores, aparentemente, se basearam em narrativa corrida, com linha sequencial que levasse o percurso até a um fim (o ressurgimento do pai náufrago). Esse tributo à coerência e ao acabamento, talvez tivesse restringido o adensamento poético que na montagem se traduz tão delicadamente com o elenco tocando acordeões, compondo o caminho da partitura da música interior. Apenas um detalhe secundário em texto que se corporifica pelo percurso, pelo mergulho no desequilíbrio para realizar o encontro, aproximar-se de algum sentido de plenitude. Paulo de Moraes regula a cena na mesma dimensão da escrita: poética, imagética e inconsciente. O diretor cria imagens que estão desenhadas como abstrações do real, fortes o bastante para impregná-las de significações evocativas, lançadas ao espectador como quadros em movimento. O ritmo que imprime a esses quadros é que estabelece a nervosidade da cena e o lirismo da ambientação. Como cenógrafo, Paulo de Moraes traça com geometrismo a área da representação - painel de quadriláteros e tanque retangular -, equilibrando a fisicalidade da água e a volatividade das projeções de Rico Vilarouca e Renato Vilarouca. Esse ambientação acondiciona com suas linhas retas a tortuosa mecânica do cérebro. O elenco acompanha com retilínea composição a racionalidade emocional do entrecho. Ricardo Martins, Marcos Martins, Marcelo Guerra e Lisa E. Fávero atuam como um coro harmônico de muitas vozes afinadas para que Patrícia Selonk detalhe o seu instigante solo. A atriz, sem dramatismos e exterioridades, mergulha no túnel de águas revoltas da personagem com rigor racional e fina emocionalidade. Demonstração da maturidade e inteligência da intérprete.       
   

Crítica/ A Gaivota
Longe de desvendar os mistérios de uma dramaturgia
Tchecov dizia que sua dramaturgia tinha humor. Mais do que uma boutade, o autor russo indicava com a afirmação que seu teatro não era feito de camada uniforme. Com várias e embutidas camadas, a cada encenação de suas peças, pode se descobrir rumos e outros atalhos interpretativos. Nada em Tchecov aponta para o unívoco, para um só caminho. Há comédia, drama, e se quisermos até melodrama, mas o que sobressai de todas os indícios estilísticos é o impenetrável mistério da existência, e é dele que se está sempre perseguindo a cada encenação. A versão de Bruno Siniscalchi, em cartaz no Teatro Gláucio Gill, prossegue, a seu modo, no desvendamento dos meandros do mistério tchecoviano. Fica distante de tocar no mundo incompleto dos personagens, nos silêncios aos quais se pode atribuir tantos ruídos e no vazio dos gestos e no ardor das palavras. A perspectiva do diretor é a de sintetizar, eliminar o embate, a interioridade, fracionar para reduzir e facilitar, se interpor ao entrecho. Na tábula rasa a que se reduz a encenação de Siniscalchi, abandonam-se vestígios de substrato e intenções de estabelecer atmosfera. A idéia, se há alguma mais consistente, desvia-se para outra direção, não exatamente para alguma opção palpável, perceptível para além do arbítrio, o que somente subtrai, esvazia e empobrece. A ocupação cenográfica da totalidade do palco e de parte da platéia com centenas de girassóis, se provoca impacto inicial, se esvai pelo esgotamento  monótono da visualidade e pelo pouco aproveitamento da iluminação. E se todo esse desacerto não bastasse, o diretor conduz o elenco de forma inexpressiva e descaracterizante. Se a princípio, imagina-se que alguns atores seguem um naturalismo hesitante, em seguida percebe-se que cada um parece decidir o que e como interpretar seus personagens. Julia Lund empresta uma certa mutabilidade a Nina, o que Carla Ribas não consegue na padronização e rigidez de sua Arkádina. Karina Teles, ainda que timidamente, dá vida a Macha. Gabriel Pardal uniformiza, pela linearidade de sua atuação, o Trepliov. Thales Coutinho está muito distante de qualquer abordagem concreta de Miedviênko, e Ricardo Gonçalves contribui para a invisibilidade e o esfumaçamento da canalhice de Trigorin.    

                                               macksenr@gmail.com