quinta-feira, 5 de julho de 2012

Outros Palcos


São Paulo

Crítica/ Bom Retiro 958 Metros
Subterrâneos explícitos de um bairro 
O grupo Vertigem, na sua intervenção no cenário social, político, humano e urbano, inferido como cena, já utilizou igreja, hospital, presídio e rio poluído como ambientação para que da invenção desses palcos se construísse dramaturgia cenarizada. Questões religiosas, no início do grupo há mais de duas décadas, à epidemia de AIDS, no momento da sua eclosão, até a exposição de fraturas na arquitetura social nas últimas montagens, o Vertigem, mais recentemente, transpõe os limites do espaço para teatralizar áreas urbanas ( O Livro de Jó e Apocalipse 1,11), figurando, ora a  saga do homem brasileiro desde a miséria nortista à condição de lumpen em São Paulo (BR-3). Ou de executivos pendurados em andaimes profissionais, sempre ameaçados de despencar, ética e socialmente de enganosas alturas (Kastelo). Em Bom Retiro 958 Metros, a vertigem cênica aponta para o bairro paulistano, tradicional ancoradouro de emigrantes (antes judeus, atualmente coreanos e bolivianos), que com pequenas indústrias de confecção de roupas se estabeleceu como pólo fabril e de serviços. Com a decadência do bairro, em que muito de sua atividade se refugiou na clandestinidade laboral e as mazelas sociais se acentuaram pela droga, o Bom Retiro se transforma em palco aberto para a ocupação teatral do Vertigem, refração de microcosmo real. Intervir cenicamente em determinada área urbana, com histórico e especificidades próprias, exige que essas características se explicitem, se façam dramáticas para que possam ser recriadas como espetáculo. As ruas do bairro, que abrigam dois centros de cultura e lazer, pequeno shopping center que comercializa a produção das oficinas de costuras invisíveis e cafés com produtos e clientes de origem coreana, no início da noite desaparecem, tornando-se um cenário em que o vazio ameaça a emergência dos movimentos subterrâneos. É neste Bom Retiro de shopping fechado, ruas completamente despovoadas, mas com ruídos, alguns indistintos (oficinas em plena atividade), outros ao longe (a passagem de trens) que a plateia de poucas dezenas de acólitos desse ritual andarilho percorre os 958 metros dessa teia de artérias silenciosas e equipamentos urbanos desgastados (o percurso termina no abandonado Teatro Taib) para impregnar esse cenário de drama atualizado de sua história. 
Personagens  percorrem a cena como espectros
A peregrinação, que se inicia no shopping e termina em frente ao teatro, junto a uma caçamba de lixo, é construída como dramatização, em que as cenas, conduzidas por “personagens e espectros” determinam a caminhada e induzem a se integrar às referências do entorno. Pululam “faxineira filósofa”, manequins “defeituosa e com coração”, diabinhos da cultura judaica, “el dibuktronik” e “cracômanos”, que se aproveitam dos espaços abertos com literalidade ilustrativa, sem  propriamente extrair do cenário urbano significações que não sejam derivativas de pesquisa de gabinete. O texto de Joca Riners Terron surge para dar conotação aos quadros, funcionando como superestrutura imposta às imagens e, que se imagina posterior a elas. O caráter narrativo derrapa na precariedade da construção das cenas, e em nenhum momento a transcrição do que foi gestado no processo de criação do espetáculo se encorpa para além da engenharia logística de sonorização, iluminação e delimitação e uso das áreas exteriores. São equidistantes da realidade subjetiva do bairro, as tentativas de capturá-la como cena, a não ser com desenho algo borrado pelas palavras, que se fazem legendas explícitas para fotografia desfocada. Bom Retiro 958 Metros reflete algum cansaço na investigação das possibilidades expressivas do grupo Vertigem, como se houvesse urgência na refundação do dramático para redescobrir o espaço.            

                                                       macksenr@gmail.com