quinta-feira, 24 de maio de 2012

19ª Semana da temporada 2012

Três Gêneros, Três Autores

Crítica/ Auto da Compadecida
Esperteza e malícia como exercício da moralidade
Quando foi apresentada no Rio em 1957, dois anos depois de ter sido escrita pelo paraibano Ariano Suassuna, O Auto da Compadecida recebeu críticas entusiásticas mais do que merecidas. O romanceiro popular nordestino e o entremez ibérico se combinam para que a farsa armada por João Grilo, herói esperto, aparentado de Sganarelo e de Pantaleone, subverta a ordenação social, utilizando-se de meios ardilosos cultivados pela necessidade de sobreviver. A trama, divertida, extremamente bem urdida, fincada nas suas origens eruditas, transforma-se em farsa popular, de construção dramatúrgica milimetricamente desenvolvida. Nesse ”exercício da moralidade o esperto João Grilo e seu parceiro medroso Chico conduzem com malícia e oportunismos as artimanhas contra os poderosos servindo-se de expedientes  para assegurar o pão de todo dia. E os meios para tal são tramóias que inventam enterros de cachorros embalados por ladainhas em latim ou animais que descomem dinheiro. Julgado por tribunal celeste, no qual a promotoria é representada pelo Diabo, Jesus o árbitro, e Nossa Senhora, a Compadecida, a generosa interventora, ganha o beneplácito de reviver.      Sidnei Cruz não desmembrou ou fracionou o texto para condensá-lo ou torná-lo mais ágil. Afinal, as peripécias de João Grilo, neste e em outro mundo, são muitas e levam a montagem de duração mais estendida do que a hora e meia da média consumista do teatro atual. A direção toma conta da farsa acionando os mecanismos que lhe são próprios, deixando-se levar pela renovada e contínua ação, que não sofre nenhuma quebra. Um ardil  sucede a outro, em corrida impulsionada por diálogos cômicos, que Cruz administra com precisa carpintaria. O cenário de José Dias com estandartes coloridos e bordados com brilhos circundando arquibancadas que lembram picadeiro circense, é apropriado e funcional. Os figurinos de Samuel Abranches são de alto nível de criação e execução, além das máscaras e dos outros adereços que dão contorno às figuras ibero-nordestinas. A iluminação de Aurélio de Simoni adquire relevância na visualidade da montagem. A música de Wagner Campos também se destaca.  O elenco, apesar de em conjunto demonstrar relativa unidade, se desequilibra em algumas atuações. Lucci Ferreira é um Encourado diabólico, mas um palhaço menos à vontade. Janaina Prado e Bruno Ganem, ela a mulher do padeiro bem espevitada, ele um padeiro mais apagado têm contracena com o padre histriônico de Edmundo Lippi, com o maneiroso sacristão Andre Frazzi e com o inconvincente bispo Arnaldo Marques. Samuel de Assis, melhor como Manuel do que como um dos palhaços narradores, e Jacqueline Brandão, a piedosa Compadecida, dividem o palco com Luiz Machado entre a falsa truculência do coronel e a truculência física do cangaceiro, e com Renato Peres, um farsesco Severino do Aracaju. Marcos Pigossi em atuação esforçada fica um tanto aquém do medroso Chicó. Gláucia Rodrigues compõe um franzino João Grilo sem perder a esperteza e alguma malemolência feminina nesta cativante montagem em cartaz no Teatro do Fashion Mall.  


Crítica/ Obsessão
De frente e sem pudores diante de emoções noveleiras
É uma mistura de melodrama, levemente rodriguiano, com folhetim, acentuadamente novelístico, em que duas amigas rompem depois em que a traição toma o lugar definitivo nas suas vidas. No vai e vem da diferença entre as duas, Carla Faour, autora de Obsessão, em cartaz no Teatro Gláucio Gill, prova, uma vez mais, a crescente segurança como dramaturga, em especial ao investir num gênero com o qual confirma afinidades. A trama é bem urdida, segura pelos diálogos rápidos e concisos, distribuída por quadros que se desenrolam em vertiginosa sequência. O travo melodramático dos sentimentos sem filtros, tão ao estilo das rádio e telenovelas, explode na batida das frustrações amorosas e vinganças suburbanas. Não há perda de interesse diante do mútuo ressentimento com que se jogam, uma contra a outra, e em que se misturam emoções baratas. Carla Faour depura os meios da sua escrita, recorrendo ao melodrama mas sem subjulgá-lo a olhares de homenagem e de revisão. A forma é reproduzida segundo as técnicas melodramáticas, e deste modo supera a origem e ganha autonomia como peça. A direção de Henrique Tavares é frenética, como exige o material dramatúrgico, com movimentação intensa como as expansivas emoções retratadas. Com a cenografia minimalista de dominante vermelho, muito bem iluminada por Aurélio de Simoni, e com detalhes retirados de lembranças cafonas (o pente que ajeita o cabelo glostorizado é o mais divertido deles), Tavares sustenta essa maratona obsessiva com inventividade. O figurino de Clara Rocha é feliz em seu cromatismo kistch, entre o vermelho e suas derivações de gosto duvidoso.    Carla Faour, que começa um tanto fria, hesitante em segurar a personagem, ao longo da encenação se solta, acompanhando com esfuziante calor a absurda ascensão das loucas atitudes de Marina. Ana Baird, mais estável na sua interpretação, leva a fogosa Lívia aos extremos de reações destemperadas, com igual vibração da personagem. Antonio Fragoso, com maior ênfase na composição física, e Celso Taddei, com menor experiência, completam o elenco da sólida concepção de Henrique Tavares.   


Crítica/ Quebra-Ossos
Como dizer bem aquilo que se quer dizer
Quebra-Ossos, a modesta e despojada montagem em cartaz na Sala Rogério Cardoso, é surpreendente pela discrição e despretensão como se oferece à platéia. A diminuta sala da Laura Alvim que a abriga já é indício de que a medida da encenação não é a de se expandir para além de enquadramento gestado a partir do que o texto propõe e das características e ambições do trio de atores. O invólucro dentro do qual se acondiciona essa pequena amostra de teatro revigorado, sem firulas que o esconde em modismos ou desculpas para dificuldades de produção, leva a constatação de que é possível fazer teatro, considerando as suas dimensões, avaliando suas potencialidades, mensurando o alcance de seus passos. Tudo neste Quebra-Ossos, a começar pelo excelente texto de Julia Spadaccini, pela direção plenamente sintonizada com a dramaturgia e pelo elenco afinadíssimo, funciona sem ruídos e dentro de padrões auto-impostos. Spadaccini manipula, multiplicando, três personagens que vivem situações nas quais mudam de posição e personalidade, num jogo de trocas bem arquitetado e com alta voltagem de envolvência. O texto é inteligente, arejado, sem o compromisso de ter que dizer alguma coisa, mas de dizer bem aquilo que quer dizer, e tão somente isso. Essa aura de franqueza e sinceridade da autora se transmite ao diretor Alexandre Mello que, com igual simplicidade,  oferece ainda mais vitalidade ao texto e encontra soluções cênicas para a inteligente tradução as pulsações rítmicas do entrecho. A mão hábil do diretor não deixa que se interrompa a fluidez narrativa, aproveitando-se das surpresas renovadas que a engenhosa  trama de Julia Spadaccini propõe a cada cena. A parte técnica – cenografia, iluminação, figurino, trilha – se conjuga em harmônica unidade que segue a concepção descompromissada do quadro geral. Os atores – Rodrigo Turazzi, Patrícia Elizardo e Cirillo Luna -  transmitem o humor alegre e a vibração que emana da maneira solta com que transmitem a variação de personalidade das figuras que saem, como de uma caixa de mágica, umas das outras. Cirrilo Luna e Patrícia Elizardo têm desempenhos de prazerosa comunicabilidade, e Rodrigo Turazzi se revela talento bem mais do que promissor.   

                                                    macksenr@gmail.com