terça-feira, 27 de março de 2012

13ª Semana da Temporada 2012


 Crítica/ Vestido de Noiva
Vestido num único plano
Independente de seu valor histórico para o moderno teatro brasileiro, Vestido de Noiva, segunda peça escrita por Nelson Rodrigues, deve ser considerada, ainda hoje e acima de tudo, como um texto bem estruturado, e com vigor cênico que se mantém inalterado. Essa limpeza da sua arquitetura textual pode, como em qualquer obra ser revista por encenações contemporâneas, adquirir tonalidades mais atuais, investir em linha interpretativa à procura de rompimentos de linguagem, e até mesmo de abrir outras possibilidades expressivas para o universo do autor. A montagem de Caco Coelho, em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil, constrói edifício artesanal, preenchendo-o com maquinaria niveladora de outras encenações. O dispositivo cenográfico, que ocupa o hall central do CCBB, relembra, pela disposição da platéia e pelos níveis escalonados como áreas de representação, o cenário de Victor Garcia para a montagem de O Balcão, na década de 70, em São Paulo. E a referência não se restringe à ambientação, mas à igual concepção ritualística e de solenidade profana que a montagem do iconoclasta Garcia imprimia ao texto de Genet. Ambos, cenário e rito, funcionavam com impressionante impacto sobre as torturantes obsessões do autor francês e a cena da época. Diluídas, pelo tempo e pela citação, as delirantes obsessões rodriguianas desabam, soterradas na feérica multiplicação de vozes, unificação do estilo de atuação, e explosão luminosa da atual encenação. Tal como a cenografia, o que esta versão tecnicamente rigorosa da peça de 1943 transmite é exteriorização e efeitos, jogando-a num terreno devoluto, no qual se padronizam recursos e se obscurece a clareza. Os três planos narrativos do original se espalham pelo espaço sem distinção entre eles, a não ser aquele determinado pela verticalidade. A impostação adotada, mantêm as cenas no mesmo diapasão, prejudicadas ainda por estimulação visual e reverberações sonoras que confirmam a pulverização de ruídos e falas horizontando o texto. Quem desconhece Vestido de Noiva continuará a desconhecê-lo.


                            100 Anos do Anjo Pornográfico


O centenário de Nelson Rodrigues provocou uma febre de montagens, efermérides e exposições que ocupam o calendário teatral e algumas derivações (o autor de Vestido de Noiva foi enredo, no último carnaval, da escola de samba Unidos do Viradouro). O Festival de Curitiba apresenta as adaptações do romance O Casamento e da novela Escravas do Amor, que Nelson assinou com o pseudônimo de Susana Flag, com o grupo Fodidos Privilegiados. No projeto Mambembão, o grupo de Moisaco de Cuiabá encena a sua versão para Anjo Negro. O Espaço Sesc organiza seminário sobre aspectos do dramaturgo, jornalista, torcedor do Fluminense e frasista imbatível. E a Funarte projeta para agosto, o mês do aniversário, a exibição das 17 peças de Nelson Rodrigues por grupos das cinco regiões do Brasil, que serão selecionados por comissão do órgão. Ainda a Funarte expõe no Teatro Glauce Rocha fotografias, recortes de jornais e programas das encenações, desde o seu primeiro texto (A Mulher Sem Pecado) até ao último (A Serpente). E outras tantas montagens se distribuirão ao longo dos próximos meses, como O Beijo no Asfalto, que ganhará contornos de musical, com composições e atuação de Claudio Lins, e direção de João Fonseca, e Valsa N°6. em concepção com bonecos e projeções 
Peças do Autor

-  A Mulher Sem Pecado (1941) - Já na primeira peça, Nelson demonstra suas obsessões temáticas e insinua técnicas dramáticas. Aponta para certos aspectos que antecipam aquilo que mais se valorizaria e o que menos resultaria. A estrutura revela, ainda que timidamente, a diversidade de planos narrativos, além de linguagem que arranha o melodramático e o folhetinesco, sustentando a trama em que o caráter obsessivo dos personagens governa a necessidade de valores absolutos. Olegário constrói o desejo de encontrar na jovem mulher, Lídia, mais do que indícios de traição, mas o de induzí-la a trair. O marido desenvolve paixão ao inverso, procurando moldar a mulher à sua certeza de que a pureza é algo desejável, mas impossível de ser alcançado. Ao se realizar o que Olegário tanto temia, resta-lhe negar a própria vida, afinal não há razões que justifiquem a sua existência.

-  Vestido de Noiva (1943) - O caráter fundador do texto, não apenas pela surpreendente formalização dramatúrgica, mas pela invenção de diálogos intensos e delirios oníricas. Ao capturar o imponderável do sonho e na imaterialidade das evocações, retira do seu arsenal artístico-afetivo, os fragmentos daquilo que recompõe o que ficou no passado. Com a cena demarcada em três planos – realidade, memória, alucinação – projeta os estertores de Alaíde, logo depois de ter sido atropelada na Glória.



-  

Álbum de Família (1946) - A peça sofreu rejeição moral na época da estréia, e se transformou nnum escândalo estranho às suas qualidades. Nelson como bom frasista, sintetizou o que pensava da peça e de seus detratores, definindo-a como uma de suas "obras pestilentas". Essa narrativa mítica expõe o desejo da interação absoluta com a ancestralidade. O incesto, como expressão desse desejo de retorno ao primitivo encontro com a origem, é a procura da terra-maters, da integração com o que é original, da pureza intocada. A manifestação desses desejos em uma família se projeta em um pai (Jonas), que tenta reencontrar a filha (Gloria) nas mocinhas virgens que estupra. A mulher (D. Senhorinha) mantém relação incestuosa com o filho Nonô, "o possesso", que "teve medo e enlouqueceu". Os outros dois filhos são Guilherme, que se castra por medo da atração pela irmã, e Edmundo, apaixonado pela mãe. A tia solteirona, se encarrega de trazer as meninas para Jonas, responsável pela única vez em que ela manteve relações sexuais. O painel familiar tem a densidade de uma tragédia, e na sua essência traz as mesmas conotações seminais das similares gregas.
-  Anjo Negro (1947) - A trama envolve o negro Ismael que se casa com a branca Virgínia, que têm filhos que acabam mortos. Gravitam em torno do casal uma tia que aplica à sobrinha uma vingança grega, enquanto um irmão adotivo e cego do marido se envolve com a mulher, com quem tem uma filha, que, por sua vez, é cegada. A cegueira provocada elimina a visão da cor negra da pele que o personagem Ismael procura ignorar. Por sua vez, Virginia elimina os filhos, numa sucessão de assassinatos, obstinada entre o amor e o ódio a Ismael. 
-   Senhora dos Afogados (1947) - Há muito de melodrama na tragicidade nos conflitos  de família regida, na aparência, por convenções. Cada um dos seus membros, enredados na falência de seus desejos, se estiolam em incessante “purgação das emoções”. Não se permitem transpor à sua própria condição de prisioneiros de enevoados crimes, reféns de incestos, verdugos de sua ascendência, e náufragos de vagas tormentosas. Envolvidos pelo mar, que  circunda suas pulsões e traga suas existências, só resta a este porto familiar, sem chegadas, a convivência com as partidas: de mãos, da vontade, da vida. Nelson não faz julgamento moral dos personagens, muito menos desenha perfil psicológico de quaisquer deles.
-  Dorotéia (1949) 
-  Esse monólogo foi inspirada pela troca de cartas entre a atriz Eleonor Bruno e Nelson Rodrigues, que escreveu a peça  para a amada, com quem viveu uma intensa relação.

-   Valsa nº.6 (1951) – Neste monólogo, Sônia se desdobra em tempos diferentes para recompor a própria morte. Assassinada, quando tocava a valsa de Chopin, evocando o amor por Paulo, que como tudo que  lembra na sua memória fragmentada é volátil, confunde-se na sua identidade que não reconhece inteiramente. Com força verbal, a morta assume a voz, não de vítima, mas de alguém que desencadeia fluxo de lembranças. Escrito para tentar neutralizar  os insucessos de suas últimas peças e para oferecer à irmã Dulce Rodrigues, na sua estréia como atriz, reitera alguns elementos de seu universo. Mantendo os seus diálogos curtos e secos como uma voz interior que contracena com planos da memória e da alucinação, em frases entrecortadas, rtimadas por fragmentação dramática. No delirio, a adolescente recompões, gradativamente, o seu código de conhecimento através da negação, se autorevelando por aquilo que desconhece.   


-  A Falecida (1953) - Zulmira, mulher de subúrbio, casada com um desempregado, fanático por futebol, que ao ser descoberta por uma traição ao marido, constrói a sua própria morte. Para tanto, contrata o seu enterro, exigindo que seja o mais caro e luxuoso. Dividida em três atos, desvenda no terceiro, quando há o encontro do marido com a amante, depois de Zulmira já estar morta. Nelson Rodrigues não deixa que o público suspeite dos motivos que dão certeza a Zulmira de que vai morrer, ao mesmo tempo que explora a sua obsessão pelo conceito de morte e revela o seu papel de repórter, o que olha para o que acontece à sua volta para compreender a condição humana. Viver é uma perda constante e que o estado de identidade absoluta com a vida não existe, restando ao homem apenas a sofreguidão de sobreviver no pecado de nunca ter sido uma unidade completa. que não deveria ter nascido." Desse estigma do nascimento, todos os seus personagens se ressentem, especialmente a Zulmira que escolhe a morte como única alternativa de respeitar a indigência de sua vida.
-  Perdoa-me Por MeTraíres (1957) - Mais do que um “sucesso de escândalo” quando estreou, e além do achado  do título, Perdoa-me Por Me Traíres é investida de Nelson no melodrama, gênero que lhe era tão atraente, e nas exaltadas frases de efeito e situações provocativas que manipulava com maestria. Colegiais prostituídas, tios pedófilos, vilanias de assassinos e abortos são condutores desta narrativa, que pede emprestado ao temperamento exacerbado do autor, a pulsão de sentimentos expostos com despudor. As revelações são desabridas, e os sentimentos melodramáticos tão evidentes quanto as emoções de capítulos de radionovela.

Viúva, Porém Honesta, (1957) - Frases de efeito ("só acredito em mulher honesta com úlcera"; "adquiriu com a viuvez o pudor, só toma banho de galochas"; "saiu do cemitério chupando chica-bom") e nomes e adjetivos para os personagens (Dr. Lambreta, "o clínico ilibado"; Tia Assembléia, a solteirona; Diabo da Fonseca, o próprio Belzebu, Dorothy Dalton, o crítico de teatro, Dr. Sanatório Botelho, o otorrino). Neste clima de ousadia verbal, Nelson conta a história de Ivonete Guimarães, filha de um poderoso jornalista, que é levada ao casamento com o crítico de teatro, mas na noite de núpcias trai o marido com quatro homens. E justamente nesta noite, Dalton é atropelado por uma papa-filas (designação de um enorme ônibus que circulava pelo Rio à época em que a peça foi escrita). Desde então Ivonete ("um vivo não significa nada, mas um morto não se trai") decide nunca mais se sentar ("sentar é um desrespeito à memória de meu marido").
-  Os Sete Gatinhos (1958) – Essa "divina comédia", retoma o tema de família suburbana carioca, agora se decompondo a partir da revelação de que a filha caçula, Silene, frusta as expectativas da família ao ser seduzida pelo malandro Bibelot.
-   Boca de Ouro (1959) - O bicheiro de Madureira que persegue a redenção da sua origem, nascido na pia de um prostíbulo e coberto de sangue e de mortes. As várias faces de Boca de Ouro, o bicheiro cafajeste da Zona Norte, que surgem a partir de depoimentos de Dona Guigui, após a sua morte, ganham brilho e verossimilhaça. Boca de Ouro tem seu dia de caça e é brutalmente assassinado. O jornal "O Sol", buscando uma grande reportagem, tenta fazer a cobertura da morte do bicheiro de forma diferente: investigando D. Guigui, ex-amante do Boca, uma mulher despachada e sem classe, mas que sabe muita coisa sobre o figurão. O ouro que põe nos dentes e que amealha para construir o seu caixão é a representação da sua vingança pela origem humilhante de uma mulher qualquer que deu à luz na pia de uma gafieira. O brilho do metal é capaz de ofuscar qualquer código moral, corruptor de qualquer classe social. Boca de Ouro compra sexo, consciências, virtudes, ainda que saiba que não consiguirá nunca se livrar do estigma de sua origem. A narrativa se constrói a partir da morte do bicheiro, e se projeta em três planos narrativos, versoes diferentes contadas pela mesma personagem. Cada uma delas, que se excluem entre si, serve para compor a imagem de Boca, através de uma ex-amante, testemunha volúvel de sua vida, que muda as suas versoes ao sabor dos sentimentos do momento. 

-       Beijo no Asfalto (1960) - Arandir, num gesto de espontânea reverência à morte, beija a boca a pedido de um homem moribundo, atropelado por um lotação às cinco horas da tarde em plena Praça da Bandeira. Depois desse gesto, é submetido a linchamento público e condenado à solidão familiar, aquilo que sempre procurou: a bondade (“ Em toda a minha vida, a única coisa que se salva é o beijo no asfalto. Pela primeira vez na minha vida. Por um momento, eu me senti bom.”). A teia que vai se formando em torno de Arandir, que é feito culpado de crime engendrado por um repórter inescrupuloso e sancionado por um delegado truculento, compromete todos que estão à sua volta. Cada um vai sendo contaminado pela mentira, deixando Arandir só no papel de vítima, mas ao mesmo tempo fornecendo-le  armas para que chegue à consciência de si próprio, em meio à ciranda de insinuações de incesto, verdades camufladas e desejos rasteiros.

-  Otto Lara Resende ou Bonitinha, Mas Ordinária (1962) -  A frase: "O mineiro só é solidário no câncer”, atribuída a Otto Lara Resende, se transforma em obsessão para o ex-contínuo Edgar provar a inexorabilidade da canalhice. "No Brasil, quem não é canalha na véspera, é canalha no dia seguinte", está entre as tantas observações com que Nelson, frasista extraordinário, recheia a narrativa. Edgar nesta busca se defronta com a evidência de que ao ser humano não restam possibilidades de fugir à sua condição intrisecamente má e da inviabilidade da bondade. O ex-contínuo deseja um enterro de luxo para quebrar o estigma da morte sem dignidade do pai, enterrado em caixão comprado com a subscrição dos vizinhos. Um cheque nas mãos de Edgar põe à prova a sua integridade, provocando-lhe dúvida moral permeada pela frase do jornalista mineiro Otto.
-  Toda Nudez Será Castigada (1965) - Na primeira cena, fica-se sabendo que o que se ouve é a ''voz de uma morta'' e, portanto, não há qualquer suspense quanto ao desfecho. O depoimento da morta relata ao marido os fatos que antecederam sua decisão de acabar com a vida. Geni se mata ao perceber que seu amor juvenil a abandonou, deixando para o marido o legado de sua atitude neste painel repressivo urdido pelo cunhado vingativo. A tragédia da família saturada de moralidade asfixiante, diante da qual cada um de seus membros demonstra o poder contraditório da repressão, se amplia como inexorável destino de emoções suburbanas. O trágico, que se esconde nos meandros de atos derramados, revela  conflitos obscuros, tensões interiores, num patético espelho de obsessões.
-  Anti-Nelson Rodrigues (1973) - A peça narra a história do filho do casal Tereza e Gastão, Oswaldinho, mimado pela mãe e desprezado pelo pai, inescrupuloso, ladrão e mulherengo. O jovem se apaixona por uma funcionária da fábrica do pai, a incorruptível Joice. Oswaldinho tenta comprar a moça, mas a pura Joice espera por um amor desde menina e não se deixa le var pelo dinheiro. Até que ponto o rapaz avança para ter um capricho realizado? Até que ponto as convicções pessoais superam as tentações mundanas? A surpresa do desfecho nesta trama de assédios, ameaças, ciúmes e poder está no final feliz. A peça surge depois de oito anos de silêncio teatral, em parte por compromissos jornalísticos, decepção com a receptividade de suas peças e problemas de saúde.

 A Serpente (1978) -  Por sua concisão e pelas situações recorrentes na obra de Nelson Rodrigues, parece um tanto ''cansada'' - o que não é surpreendente, já que esta é a sua última peça, escrita dois anos antes de sua morte. Os diálogos, curtos, incisivos, rascantes, mostram-se com a inteireza do estilo, mas com pálido vigor. O tempo dramático se revela exíguo para o desenvolvimento da ação, deixando pouco espaço para o adensamento das cenas, provocando um desfecho um tanto apressado. Guida, que vive com exuberante intensidade o amor por Paulo, cede, por uma noite, seu marido à irmã Lígia. A decisão vem depois da descoberta de que seu cunhado Décio, após anos de casamento, nunca tocou em Lígia. Esse ato desencadeia a explosão de ciúmes, a transferência de identidades e conflitos de remotas interdições, que são muito mais sugeridos do que levados a extremos dramáticos.
                                          macksenr@gmail.com