segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Festivais

Festival Internacional de Artes Cênicas da Bahia

À Procura de Arrebatar

De Salvador: Pólvora e Poesia
Pela quarta vez e com crescente amplitude, o Festival Internacional de Artes Cênicas da Bahia, o Fiac de Salvador, se consolida como uma mostra de contornos que se definem pela permanente inquietação. A  programação deste ano, tanto a nacional quanto a internacional, além da local, refletiram a vontade de estender e capturar, como um panorama de descobertas ”aquilo que arrebata na discussão da linguagem teatral”, como conceitua um dos curadores, Felipe de Assis. Essa intenção foi parcialmente alcançada em escolhas que abrangeram nas originais intervenções do argentino Daniel Veronese em texto de Tchecov (Espía a una Mujer que se Mata), na invenção do paranaense Márcio Abreu (Oxigênio), no frescor narrativo do carioca Felipe Rocha (Ninguém Falou que Seria Fácil e Ele Precisa Começar),e na renovada experiência do teatro de animação da companhia do Rio, a PeQuod (A Chegada de Lampião no Inferno). Numa refração desta diversidade de tendências, a presença de Domínio Público do espanhol Roger Bernart, com sua proposição de um jogo coletivo com a platéia, provocou reações bastante intensas no público participante. A produção baiana, vista no festival, reflete com alguma timidez os impulsos expressivos das montagens visitantes. Luz Negra, texto do salvadorenho Álvaro Menen Desleal, encenado pelo baiano Rino Carvalho, é como um pastiche de Samuel Beckett, já que os diálogos sobre finitudes são vividos por duas cabeças, separadas dos corpos e mergulhadas no solo, em imprecações contra sua condição terminal. Carvalho se utiliza de múltiplos recursos sonoplásticos, de imagens desérticas e de movimentos de um terceiro ator-bailarino, numa composição mimética de tantas outras referências a montagens beckettianas. Resta pouco espaço para uma real avaliação para determinar o que de original o diretor projeta na cena. O que ressalta desse espetáculo em que texto e encenação são meras ressonâncias, é o som forte da atuação, entre rascante e melodiosa crueza, de Evelin Buchegger. Atriz de uma inteligência interpretativa que projeta com sintonia fina, Evelin Buchegger se impõe no palco como alguém que conhece e destila os seus melhores recursos numa montagem carregada demais de elementos dispensáveis. Em registro bem diverso, Pólvora e Poesia, a tumultuada relação de Paul Verlaine e Arthur Rimbaud, tão bem captada em seu vôo destrutivamente poético por Alcides Nogueira, ganha o palco assinada pelo diretor Fernando Guerreiro. De uma mesa como área de representação, ocupada pela fisicalidade dos atores e inflamada pela palavra fulgurante, emergem emoções pulsantes. Guerreiro provoca explosivo choque de temperamentos, acionando carga emocional, ao mesmo tempo contida e detonada, jogando seus estilhaços na platéia, que os recebem, ora como um sopro verbal, ora como um tiro provocativo. Montagem encorpada, repleta de  ardor criativo, mergulha com destemor na arquitetura de uma cena irrefutavelmente poética. Talis Castro como Rimbaud, e Caio Rodrigo como Paul Verlaine conduzem, vigorosamente, essa descida ao inferno interior de dois temperamentos exaltados pela paixão mútua. Recriam a liberdade vivida por aqueles que não têm caminhos, e são conduzidas por iluminações destemperadas, e que têm a consciência de que a  “vida é deslumbrantemente má”.

De Salvador; Bença 
Na perspectiva de uma outra poética, o diretor Márcio Meirelles foi em busca do passado da cultura afro-baiana para referenciá-la a um presente que se vai desfazendo. Bença, a mais recente montagem do Bando de Teatro Olodum, mantém a coerência estilística de seu repertório, ao transformar a cultura afro-brasileira em matéria dramática.  Em “Bença”, o elenco fixo do Bando faz reverência ao conhecimento dos mais velhos, ligados à religiosidade do candomblé, e à perda da sua influência na contemporaneidade. O formação do mundo e a existência humana  se constituem em unidade que, segundo os cânones da religiosidade de origem africana, é dada pela natureza. Hoje, quando essa natureza sofre com tantas mutilações e a vida está voltada para variados apelos exteriores, o tempo parece apenas contabilizar o imediatismo de sua passagem. É destas contradições e do esquecimento daquilo que nos foi legado de que trata esta encenação de Márcio Meirelles. O palco abriga um terreiro de candomblé, com os atores  vestidos de branco, tocando atabaques e instrumentos de celebração aos orixás, acólitos das entidades em cerimônia de exaltação. Não é fácil perceber todo o significado do cerimonial cênico, já que a linguagem religiosa tem códigos que nos são desconhecidos. O elenco evolui como num balé, capaz de criar formas harmoniosas entre o calor do terreiro e o rigor do palco. Sem folclore e com idéia dramatúrgica consistente, o Bando de Teatro Olodum faz depoimento sensível e, algumas vezes até contundente, sobre o tempo e o desgaste do seu mal uso.
Grand Théâtre Pão e Circo em que a atriz baiana Carolina Kahro assina  texto, direção, luz, cenografia e interpretação, não é, como parece a princípio, um projeto de excessiva exposição. É tão somente um trabalho concentrado de uma artista que deseja falar das mazelas que alimentam nosso mundo, util;izando várias técnicas expressivas. Numa concepção entre a bufonaria da atuação e o geometrismo do cenário, Carolina Kahro reflete sobre questões sociais, a intensidade de estímulos alienantes de uma certa mídia, e a  exposição realista de manifestaçòes da miséria. É muita coisa, sem dúvida, o que leva o monólogo a relativa dispersão, que supera essa limitação pelo domínio do seu arcabouço narrativo, que a atriz transmite com segurança, evidenciando a sua completa adesão ao seu espetáculo, sem torná-lo meramente personalista . 

De Porto Alegre: Dentro Fora
Num registro ascético, distantemente clownesco, Dentro Fora, do Rio Grande do Sul, é uma inesperada proposta, que demonstra acabamento e limpeza visual, sintonizados com a crueza do texto de Paul Auster. O casal, confinando em caixas, com seu discurso emocional esgotado pela semântica da aridez da perda das reais significações, dialoga com o mundo ao qual já não se inclui. De fora, que sabem não ser mais possível fazer parte, os mantém dentro, onde se pode, ao menos, representar, o que não mais existe no exterior. A encenação de Carlos Ramiro Fensterseifer é descarnada de drama, como pede o universo derrisório de Auster, mas preenchida por um colorido desbotado de contrastes frios. O vazio que existe de ambos os lados, se encontra numa cenografia em que dois aquários, muito bem iluminados pela sutileza das mudanças, que determinam variações de cor nos figurinos e na caracterização do casal de atores, se destacam como quadros vivos. O adensamento da cena, que não se deixa contaminar pelo formalismo estetizante, encontra em Liane Venturella e Nelson Diniz, um par que desempenha com rigor e depuramento esse sofisticado espetáculo de apenas 45 minutos.


De Buenos Aires: El Pasado es un Animal Grotesco
Depois de ter participado do festival Tempo, no Rio, há pouco mais de um mês, El Pasado es un Animal Grotesco, do argentino Mariano Pensotti, que também já foi visto em mostras européias, foi apresentado no Fiac com boa recepção. O percurso internacional é plenamente justificado pela intensidade com que flagrantes de pequenas individualidades, durante dez anos e numa Argentina convulsionada por crise política e econômica, são expostos em ciranda de humor trágico e volteios de solidões. Neste carrossel de histórias que se desenrolam num tempo que oferece pouco mais do que patéticas possibilidades de existência, Pensotti explora o grotesco e melancólico da aventura humana. Com atores tensionadas em alternância entre narradores e intérpretes, o animal de que fala o titulo vai se mostrando, em paralelo, ao acúmulo da passagem dos anos (de 1999 a 2009), embalados em caixas repletas dos despojos deixados pelo caminho.  
O grupo belga Tristero e Transquiquennal apresentou um, senão desconcertante, pelo menos divertido, espetáculo de humor-catastrófico, em que os espectadores são conduzidos a conviver, via projeções e legendas (não há texto ou estrutura verbal narrativa), com informações sobre os perigos de acidentes. O risco de se estar numa sala de espetáculos é demonstrado pelas estatísticas de incêndios. É quase o mesmo de estar na sua própria casa, e ter, como aconteceu na Bélgica, um avião caindo sobre a sua cama . Bem humorada, um humor belga, ou de Flandres, não se sabe muito bem, essa brincadeira  sobrevive até mesmo à nossa sensibilidade tão distante do que se supõe seja o risível para os espectadores da cidade sede da União Européia.  

                                                                macksenr@gmail.com