quarta-feira, 5 de outubro de 2011

37ª Semana da Temporada 2011


Algarismo e Correspondência no Espaço Sesc

Crítica/ Um Número
Fluxo de emoções entre corpos e almas
A numeração de tantos eus, multiplicados de um garoto-matriz e gerado de paternidade única, compõe a seriada narrativa da inglesa Caryl Churchill. A proliferação de vidas artificiais, criadas em tubos de ensaio, deixa ver uma identidade que se acrescenta ao corpo de tantos e na mensuração de sentimentos que não se podem clonar. O texto de Churchill especula sobre as consequências de um corpo ser recriado em outro, um quase igual, confrontando quem provocou a transposição e quem a vive. A habilidade da autora está em não se fixar nas questões pretensamente científicas de tal especulação. Muito menos na discussão sobre a ética dessa prática, mas de estabelecer diálogo entre pai, gerador do desejo de permanência, e filho, objeto de identidade difusa. Enquanto um procura, como pode, justificar a sua cruel experimentação, o outro se debate na busca de encontrar razões, no interlocutor e em si, para sua existência. No instável plano do desconhecido, no vago fluxo das emoções, no pantanoso mundo da racionalidade, se desvenda, aos poucos e com fina troca de palavras candentes, o imponderável universo das relações irreproduzíveis de corpo e alma. Um Número, texto inteligente – dois atores, diálogo vibrante, narrativa instigante – é servido por direção, igualmente, inteligente. Pedro Neschling, que dispõe de dois ótimos atores, se concentra na interpretação como centro e eixo da encenação, criando os tempos de passagem e o ritmo interno da montagem, com a sensibilidade exigida pelo texto. Nada se quebra neste embate surdo de físicos e afetos clonados, a não ser os que marcam os rompimentos do percurso até a consciência das diferenças. Essa sutileza de encontrar a racionalidade da autora e as rupturas do desenvolvimento narrativo estão afinados pela direção precisa e na medida. A sugestão cenográfica de Gilberto Gawronski, pedaços desmontados de cadeiras que parecem emergir do solo, reflete a mesma simplicidade intencional do diretor. A iluminação de Adriana Ortiz é decisiva na construção de visualidade dramaticamente desenhada. A música de João Paulo Mendonça complementa os efeitos sóbrios da montagem. A dupla de atores – Pedro Paulo Rangel e Pedro Osório – compõe com a singularidade de seus temperamentos de intérpretes, as individualidades dos personagens. A intensidade controlada de Pedro Paulo Rangel empresta certezas hesitantes ao pai. Pedro Osório, que se distribui por três personagens, caracteriza cada um deles com rigor construtivo, emprestando-lhes peso e volume adequados.     

Crítica/ Cartas de Maria Julieta & Carlos Drummond de Andrade
Conversa epistolar entre corações abertos
A correspondência, desde a infância até o final da vida, de pai e filha, ele poeta, ela escritora, não se restringe ao âmbito literário, mas ao espaço do afeto. É de lá, que saem os primeiros e constantes liames de uma conversa epistolar que acompanhou a ambos, alimentando com carinho, as alegrias e vicissitudes que fazem parte de todas as existências. A pesquisa de Sura Berditchevsky e do filho de Julieta e neto de Drummond, Pedro, perpassa em tempo emocional, a troca de sentimentos que as cartas expressam e a filiação sustenta. São corações abertos, prontos a lançar, ao compasso do cotidiano das vivências, os laços que reforçam prazeres, dores, alegrias, melancolia, até o desaparecimento. Pai e filha teceram o bordado de cada fase de suas vidas, como duradoura prova de amor, que resistiu à distância e a momentos em que a poesia pareceu fugir. Cartas é uma montagem que expõe convivência delicada e docemente familiar, e que atinge a platéia com igual delicadeza e doçura. A seleção, que obedece a cronologia da escrita, demonstra o cuidado dos pesquisadores em ressaltar o que cada carta poderia provocar na arquitetura cênica para ser fruída na mesma sintonia em que foi gerada. A direção conjunta da atriz e de Luiz Fernando Philbert, com a contribuição das imagens de Renato e Ricardo Vilarouca e da cenografia atuante de Bia Junqueira, detalham a evolução de duas vidas que se mantiveram ligadas sem interrupção. A atriz, que se movimenta continuamente, evitando possível rigidez anti-dramática de troca de cartaz, é apoiada pelas projeções e pela mobilidade que a cenografia permite. Sura Berditchevsky conduz, não apenas a correspondência no seu sentido epistolar, mas também aquela que Maria Julieta e Carlos Drummond desenvolveram até a morte. A atriz mantém uniformidade vocal e contenção interpretativa que servem, perfeitamente, ao clima poético que se espalha, suavemente, na cena.          


Festivais em Cenas Curtas

Festa Internacional de Teatro de Angra – No oitavo ano, a Fita da cidade litorânea do Rio selecionou 60 espetáculos que, de 14 a 30 de outubro ocuparão duas tendas e o Teatro Muncipal que será inaugurado durante a mostra. Divididas em várias sessões – Palco Sesc, Transpetro, Cult, Comédia, e Fitinha – as montagens têm, em sua maioria, origem no Rio. A Fita será ainda palco para várias estréias nacionais, como a de Quatro Faces do Amor, com direção de Tadeu Aguiar; O Grande Amor da Minha Vida, comédia de João Falcão, Guel Arraes e Carina Falcão; Getsêmini, de Mário Bortolotto; C’est la Vie, projeto de Ítalo Rossi, interrompido com sua morte, e levado adiante por Gilberto Gawronski e Luiz Fernado Philbert; Não Olhe para Baixo, Você Vai Querer Pular , direção de Duda Ribeiro; Antes, Depois, direção de Olé Erdmann; As Dificuldades de Ser Homem, texto de Domingos de Oliveira, com Pitty Webo e Dado Dolabella; A Volta dos Que Não Foram, do grupo In Cena; Crimes Delicados, texto de José Antônio de Souza; Caixa de Phosphorus, de Renata Mizrahi, direção de Suzanna Krueger; Dois Perdidos Numa Noite Suja, “clássico” de Plínio Marcos, com direção de Gabriel Gracindo; e Namíbia, Não, texto do ator Lázaro Ramos, com Aldri Anunciação e Flávio Bauraqui. A participação internacional conta com dois espetáculos vindos de Moçambique.    

4° Festival Internacional de Artes Cênicas da Bahia – De 22 a 30 de outubro, o Fiac de Salvador reúne 26 espetáculos de sete países. Da Alemanha se apresenta a companhia de dança de Sasha Waltz, e da França  poderá ser vista coreografia de Jerome Bel. Da Argentina,  Espía a una Mujer que se Mata, versão de Tio Vânia assinada por Daniel Veronese, e El Pasadoes un Animal Grotesco, direção Mariano Pensotti. A programação internacional se completa com o Dominio Público, do catalão Roger Bernart, e Coalition produção conjunta das companhias belgas Tristero e Transquinquennal. Entre as montagens nacionais, cinco são cariocas (R&J de Shakespeare – Juventude Interrompida, A Chegada do Lampião no Inferno, Ninguém Falou que Seria Fácil e Ele Precisa Recomeçar, e 45 Minutos). As demais são de Curitiba (Oxigênio), Porto Alegre (DentroFora) e Brasília (Devolução Industrial e O Grande Circo dos Irmãos Saúde). Das montagens baianas foram selecionadas Bença, e o ensaio-processo de Trilogia Remix, ambas do Teatro Olodum, o projeto Plano Piloto, seis solos do grupo Dimenti, e a versão do  diretor Rino Carvalho para Luz Negra, texto do dramaturgo salvadorenho Álvaro Menen Desleal.

14° Festival Recife do Teatro Nacional  - A curadoria este ano do festival pernambucano, que se realiza de 16 a 27 de novembro, procura imprimir na programação o caráter de teatro de grupo, com escolha de coletivos que possam exibir parte do seu repertório. Ainda em processo seletivo, estão sendo convidados cerca de 20 grupos da Paraíba, Ceará, Rio Grande do Sul, Paraná, Rio de Janeiro e São Paulo, além de quatro pernambucanos. Decidida apenas a participação da Tribo de Atuadores Oi Nóis Aqui Traveiz, de Porto Alegre, com Viúvas – Performance Sobre a Ausência, que foi visto no último Poa em Cena, e ambientado numa illha do rio Guaíba, nas ruínas de um presídio. Na capital de Pernambuco, a montagem com texto de Ariel Dorfman será adaptada às ruínas do antigo matadouro de Nascedouro de Peixinhos. O artista local homenageado, uma tradição do evento, será o Grupo de Teatro Vivencial, que atuou entre Olinda e Recife de 1974 e 1982.

Janeiro dos Grandes Espetáculos – Integrante há duas décadas na agenda cultural do verão em Recife, este festival, que durante o primeiro mês do ano apresenta a produção de Pernambuco da temporada do ano anterior, em 2012 consolida a tendência de ampliar o seu alcance. Para além do formato original, estabelece a semana dos curadores, que são convidados a assistir seleta das montagens locais para eventuais participações em mostras nacionais. E o Janeiro dos Grandes Espetáculos está expandindo ainda mais sua programação, com o convite a grupos estrangeiros para integrar a sua grade. 

Porto Alegre em Cena – Com prudente antecedência, ágil capacidade de planejamento, o festival de maior fôlego do país já se movimenta para a 19ª edição, prevista para setembro de 2012. Entre os nomes cogitados, o seu diretor Luciano Alabarse, faz os primeiros contatos para trazer à mostra do próximo ano, dois diretores de língua francesa, que participaram de edições anteriores. O canadense Robert Lepage esteve em Porto Alegre, em 1998, com seu precursor espetáculo multimídia Needles and Opium, devendo voltar com montagem ainda não definida. Um ótimo nome. E o francês Patrice Cheréau, que há dois anos participou como ator da leitura dramática de Le Grand Inquisiteur, e como diretor de La Douleur, com a excelente atriz Dominique Blanc, pode retornar com seu último espetáculo, I Am the Wind. O texto de Jon Fosse, primeira produção dirigida pelo francês em língua inglesa, estreou em Londres, e o crítico do The Guardian destaca a “contracena soberba” entre a dupla de atores, nesta “tocante fábula contemporânea”. Uma aposta certeira. Tomara que esses nomes se concretizem.

                                                    macksenr@gmail.com