quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Palco Nostálgico

Como foi a temporada carioca de 1982


Fernanda como Petra: destaque em qualquer tempo 

Num ano de transição, durante o qual o país definiu a extensão do abismo econômico e a abertura política e ganhou o alento de eleições democráticas, o teatro carioca se equilibrou, precariamente, entre a retomada de produções de alto nível profissional (As lágrimas Amargas de Petra Von Kant, O Homem Elefante, e Espetáculo Ionesco) e poucas tentativas de experimentação (Nelson Rodrigues: O Eterno Retorno e A Tempestade). O risco de fazer grandes investimentos num ano em que o público se mostrou muito arredio, recomendou cautela aos grupos que, com um mínimo de dinheiro e esforços de produção quase heróicos, buscaram nos clássicos – Shakespeare, Ben Jonson, Ibsen – alternativas para a crise internacional e nacional de autores. Com exceção de Aurora da Minha Vida, de Naum Alves de Souza, 1982 não deixa registro de um texto marcante de autor brasileiro, ainda que Ver-de-Ver–o-Peso, criação do grupo Experiência, de Belém do Pará e de Ramon Stergaman, tenha lançado várias e boas idéias sobre as possibilidades de linguagem de comédia musicada brasileira.
Nos últimos 12 meses, o espetáculo teatral poucas vezes atingiu aquele ponto a partir do qual se estabelece comunicação culturalmente enriquecedora. A exceção é a inesquecível interpretação de Fernanda Montenegro em As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant, que com a força e inteligência da atriz, nos devolveu a alegria de ir ao teatro. Ou a investida de Antunes Filho em Nelson Rodrigues: O Eterno Retorno na revalorização da obra do dramaturgo. E ainda, a comunicabilidade popular de Ver-de-Ver-o-Peso, que além de boas músicas e da revelação da atriz Natal Silva, traz o embrião de ópera popular nativa. Mulher pelo Contrário, musical do pernambucano João Falcão, criticou de forma divertida a cristalização de um tipo de teatro político.
Mas foi na parte visual que o teatro em 1982 se mostrou mais criativo. Paulo Reis ocupou o Parque Lage de maneira maquiavelicamente teatral com A Tempestade, utilizando cada arcada do velho prédio para contar a história shakesperiana, ora mergulhando atores na piscina da mansão, ora criando iluminação dramática. Os cenários e figurinos de Millôr Fernandes para Vidigal: Memórias de um Sargento de Milícias, verdadeiras caricaturas vivas, com traços inconfundíveis do desenhista, lançaram novas idéias para essas áreas. E Kalma Murtinho foi, sem dúvida, a figurinista do ano, não só pelo volume de suas realizações (Quero..., Leonce e Lena, Pó de Guaraná), como pela qualidade da
totalidade delas. E o visual de Quero... ainda foi favorecido pela iluminação perfeita, cheia de nuanças e de semitons que ajudaram a adensar o clima intrigante do texto de Manuel Puig. A revelação do ano como cenógrafo fica com Biza Vianna, responsável pela ótima e bonita solução cênica para O Curral, enquanto Paulo Afonso de Lima assinou a concepção cenográfica de A Falecida, transformando o palco num carnaval fúnebre, todo preto sobre fundo branco. Pedro Sayad usou com habilidade roupas sofisticadas para criar um ar mágico para Bodas de Felissa, e Naum Alves de Souza, com competência e bom gosto, usou a simplicidade para mostrar o jogo cruel e nostálgico que se desenvolve nos bancos escolares em Aurora da Minha Vida.
Ainda que Fernanda Montenegro tenha sido absoluta na área da interpretação, outros atores também tiveram performances importantes. Yara Amaral superou a deficiência de um texto como Eu Posso? com garra de atriz de talento e muito profissionalismo. Renata Sorrah e Juliana Carneiro da Cunha duelaram de igual para igual com a toda poderosa Fernanda. Rubem Correa brilhou em Quero..., misturando a sutileza de interpretação interiorizada com a brincadeira de um ator de melodrama que não se leva a sério. Edwin Luisi, como Mozart, em Amadeus, agarrou-se à oportunidade de criar personagem numa linha quase grotesca, mas de irresistível teatralidade.
E num ano de poucas ousadias, um som novo ouviu-se no palco: o de Tim Rescala. Músico jovem, escreveu canções e foi diretor musical de Bar Doce Bar, Peer Gynt, Serafim Ponte Grande e Cenas Cariocas, numa linha melódica que mistura ritmos brasileiros à sonoridade dos cafés-concertos. Mas o som que se transformou em zoeira veio de um circo, antes armado no Arpoador, agora instalado na Lapa. Sem buscar fixar-se em nenhum estilo, colocando numa mesma lona música-circo-teatro, o Circo Voador criou um movimento em torno de si, estimulando experimentalismos, que hoje já estão absorvidos pelo consumo (como a Blitz), gerando grupos teatrais, quase adolescentes, um tanto confusos e como pouco a dizer, mas que estão trazendo para o palco uma linguagem visual muito rica.